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sexta-feira, dezembro 09, 2005

Uma Breve História do Mito - Karen Armstrong

Já conhecida do público brasileiro por sua “História de Deus”, livro em que traça a rota do monoteísmo no decurso de 2000 anos de história, Karen Armstrong retoma agora a discussão da religião de acordo com o conceito mais amplo de “mito”, em uma “Breve História do Mito”, publicada pela “Companhia das Letras” em 2005. Curta e objetiva, esta pequena monografia abre os olhos do leitor, em uma perspectiva histórica que divide o assunto nas grandes Eras da aventura humana (a paleolítica, a neolítica, a “Era Axial”, o período “Pós-Axial”, a época das “grandes transformações e a idade moderna). Armstrong foi bem sucedida em unir com sutil maestria o didatismo de exposição à profundidade, algo raro em muitos especialistas no tema.
Nesta descrição da forma como os mitos foram alterando suas feições na história, Armstrong toma um primeiro passo lembrando que os homens “(...) sempre foram criadores de mitos. Arqueólogos escavaram túmulos do homem de Neandertal que continham armas, ferramentas e ossadas de um anima sacrificado; tudo isso sugere uma crença qualquer num mundo futuro similar àquele em que viviam”. Estes mitos, cujo significado é inscrito nos túmulos dos neandertais retém cinco aspectos principais. De maneira resumida:

Os túmulos dos homens de Neandertal nos revelam cinco aspectos importantes do mito. Primeiro, ele se baseia sempre na experiência da morte e no medo da extinção. Segundo, os ossos de animais indicam que o sepultamento foi acompanhado de um sacrifício. A mitologia em geral é inseparável do ritual. Muitos mitos não fazem sentido separados de uma representação litúrgica que lhes dá a vida, sendo incompreensíveis num cenário profano. Terceiro, o mito de Neandertal foi invocado ao lado de um túmulo, no limite da vida humana (...)”. “Quarto, o mito não é uma história que nos contam por contar. Ele nos mostra como devemos nos comportar (...)”. “Por fim, toda a mitologia fala de outro plano que existe paralelamente ao nosso mundo, e em certo sentido o ampara. A crença nessa realidade invisível, porém mais poderosa, por vezes chamada de mundo dos deuses, um tema básico da mitologia. Tem sido chamado de ‘filosofia perene’, pois alimentou a organização mitológica, social e ritual de todas as sociedades até o advento da modernidade científica, e continua a influenciar as sociedades mais tradicionais da atualidade”.

Melhor dizendo, apenas pela participação na divina os frágeis homens mortais podem realizar inteiramente seu potencial. Infelizmente, atualmente à palavra mito é sempre associada uma convenção negativa (mito equiparado a mentira), quando na verdade só é eficaz quando é verdadeiro. “Um mito, portanto, é verdadeiro por ser eficaz, e não por fornecer dados factuais. Contudo, se não permitir uma nova visão do significado mais profundo da vida, o mito fracassa. Se funciona, ou seja, se nos força a mudar corações e mentes, nos dá novas esperanças e nos impele a viver de modo mais completo, é um mito válido”.
O período em que a humanidade criou seus primeiros mitos foi o paleolítico (c. 20.000 a 80.000 A.C.), no qual foi completada a evolução biológica da raça humana. Ainda não havia a agricultura e os povos eram caçadores, que julgavam que qualquer coisa, por mais inferior que fosse, seria capaz de personificar o sagrado, ao qual se uniam completamente. Algo difícil para os modernos, para quem “(...)um símbolo está essencialmente separado da realidade invisível para a qual chama nossa atenção, mas o termo grego ‘symballein’ significa ‘colocar junto’: dois objetos até então distintos se tornam inseparáveis, como o gim e a água tônica da bebida”.
Estas primeiras mitologias ensinaram as pessoas a enxerga algo além, uma realidade invisível descrita nos termos do que se convencionou chamar “filosofia perene”. Os mitos mais primitivos estavam associados ao céu, que dava aos homens uma noção do divino, do remoto, separado da insignificância de suas vidas. A maior parte dos panteões daquele período contava com seus “Deus do Céu”, que ainda é encontrado, até hoje, entre pigmeus australianos e pigmeus da Terra do Fogo, jamais representado por imagens e dispensando sacerdotes. Era um Deus sempre ausenta das decisões diárias das pessoas e por isso fracassou relativamente, ao não cumprir todos os quesitos para o sucesso do mito (na Mesopotâmia, novos deuses como Enlil e Baal se impuseram, na Grécia Uranos, o Céu, foi castrado pelo filho Cronos).
Já nesta longínqua Era, paralelamente ao desenvolvido do mito irracional os caçadores-coletores formaram em embrião a idéia do “logos”, que viria a assumir importância capital milênios depois. Os seres humanos superaram suas desvantagens físicas desenvolvendo o raciocínio e o cérebro e, “mesmo neste estágio inicial, o Homo Sapiens já desenvolvia o que os gregos chamariam de logos, o modo de pensar lógico, pragmático e científico que lhe permitiria atual com sucesso no mundo”. Ou seja:

Desde o princípio, o Homo Sapiens compreendeu instintivamente que o mito e o Logus tinham tarefas diferentes a desempenhar. Usou o logos para aprimorar armamentos, e o mito, com seus conseqüentes rituais, para se reconciliar com os fatos trágicos da vida que ameaçavam sufocá-lo e o impediam de agir com eficiência”.

Com o período neolítico e a inovação da agricultura, mudou o foco principal do mito(c. 8000 a 4.000 A.C.). Não obstante tenha resultado do “logos”, ao contrário das revoluções tecnológicas da atualidade a agricultura levou a maior consciência espiritual, tornou-se tão sacramental quando o era a caça no período anterior.

A colheita era uma epifania, uma demonstração da energia divina, e quando os agricultores cultivavam a terra e produziam comida para a comunidade, sentiam que haviam penetrado no reino sagrado e participado de sua milagrosa abundância. A terra sustentava todas as criaturas – plantas, animais e humanos – como se fosse um útero vivo”.

Neste contexto, os rituais visavam a abastecer a força da natureza, evitando que se exaurisse. Mesmo a sexualidade humana era considerada idêntica à energia de origem divina que proporcionava frutos à terra e as pessoas eram vistas como pertencentes a ela. Assim como no paleolítico o céu, venerado, personificou-se no Deus Céu, no neolítico a “(...) terra nutriz e maternal se tornou a Deusa Mãe”. Com o advento das primeiras civlilização, entre 4000 a 800 A.C.; mais uma vez a visão do divino iria se alterar, agora com outra novidade: a invenção da cidade.
As primeira cidades surgiram na Mesopotâmia, depois no Egito, na China, na Índia e em Creta. O ritmo da mudança se acelerava e a seqüência lógica de causa e efeito era mais evidente par s pessoas. O homem finalmente tinha uma sensação de domínio do ambiente e estórias como a torre de Babel (o grande Zigurate da Babilônia) bem ilustram o quão arrogantes aquelas nações se tornaram em sua nova condição.

Assim como seus ancestrais haviam considerado a caça e a agricultura atividades sacramentais e sagradas, os primeiros urbanos viam suas conquistas culturais como essencialmente divinas. Na Mesopotâmia os deuses haviam ensinado aos homens a construir os zigurates, e Enki, deus da sabedoria, era patrono dos coureiros, ferreiros, barbeiros, pedreiros, oleiros, técnicos em irrigação, médicos, músicos e escritores. Eles compartilhavam a criatividade divina dos deuses, que haviam levado a ordem para onde só havia a confusão e caos”.

Permanecia a adesão das pessoas à “filosofia perene” e aquelas sociedades conservavam a crença de que tudo o que ocorria na terra era uma réplica da realidade celestial. Assim como sua cultura urbana evoluíra a partir de diminutas comunidades agrícolas, os deuses haviam atravessado uma evolução análoga, concepção que penetra a fundo os “mitos da criação” babilônicos descritos no “Enuma Elish” (segundo milênio A.C), cuja teogonia mostra como a partir de Apsu, o rio, Tiamat, o mar e Mummu, a nuvem opaca, surgiram os outros deuses, aos pares. Como explica Armtrong:

O mito examina o processo humano de mudança, que reproduz o desenvolvimento dos deuses. Ele reflete a evolução da cidade-Estado mesopotâmia, que havia dado as costas para a sociedade agrária anterior (agora tida como lenta e primitiva) e se estabelecera pela força militar. Após sua vitória, Marduk funda a Babilônia (...) A cidade é chamada ‘bab-ilani’ (“o portão dos Deuses”), o lugar onde o divino entra no mundo dos homens. (...) A cidade portanto pode substituir o antigo axis mundi, que ligava o céu e a terra na Idade do Ouro”.

Após o paleolítico despontou a “Era Axial” ( 800 a 200 A.C.), termo cunhado pelo filósofo Karl Jaspers que designa o desenvolvimento espiritual que caracterizou o período. São séculos misteriosos em que nasceram as grandes religiões e filosofias que orientam milhões de pessoas durante mais milênios. Não se sabe porque envolveu somente chineses, indianos, gregos e judeus e por que outros permaneceram de fora (a Mesopotâmia e o Egito). O ponto central desta Era consistiu na interpretação de natureza ética e intimista dos velhos mistos, o homem e seu ser adquirem renovada dimensão e o sagrado volta à sua transcendência original.]

As pessoas nos países axiais ainda ansiavam pela transcendência, mas o sagrado parecia agora mais remoto, estranho até. Um golfo passou a separar os mortais dos deuses. Eles não compartilhavam mais a mesma natureza; não era possível acreditar que os deuses e os homens se originaram da mesma substância divina”.

Os primeiros a partir rumo ao “etos axial” foram os chineses, com a “regra de outro” (“não fazer aos outros o que queremos que nos façam”) tenso sido formulada, pela primeira vez, por Confúcio. No fulcro do novo pensamento axial, via de regra, estava a concepção de que não bastava realizar os rituais, mas adotar um comportamento ético correto. Havia diferenciações na maneira de vislumbrar a herança do passado, mas entre os mais radicais inimigos dos mitos antigos – os israelista – brotou a primeira religião essencialmente monoteísmo, firmada pelo Segundo Isaías na Babilônia.
Na Grécia, as idéias da Era Axial foram alimentados pelo “logos” (razão), estabelecendo-se a verdade por meio da indagação permanente e de consciência crítica aguçada. Sócrates firma seu método (“a maiêutica”) e o apelo à dialética contribui para ampliar o fosso entre o racional (o “logos”) e o imanente, o “mito”. Após a “Era Axial” assumiram posição de destaque – sobretudo no Ocidente – as fés monoteístas, no período chamado de “Pós Axial” (200 A.C. a 1500 D.C.) pela autora.
Neste momento, as três grandes religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo), inspiradas pelos sábios, filósofos e profetas axiais, reinvidicavam se basearem na história e não no mito. O judaísmo, em particular, possui relação conflituosa e paradoxal com a mitologia de outros povos, às vezes antagonizando-os, outras usurpando histórias estrangeiras para ilustrar sua própria visão. Mas, sem dúvida, inspirou outros mitos como o cristianismo, que assim como o Islã foi “uma reafirmação tardia do monoteísmo axial”. Em todas esta tradição (monoteísta) o mito continua a exercer seu papel.

Em virtude da dimensão mítica dessas religiões históricas, judeus, cristãos e muçulmanos continuaram a usar a mitologia para explicar suas visões ou reagir a uma crise. Todos os seus místicos recorreram ao mito. As palavras misticismo e mistério se vinculam a um verbo grego que significa ‘fechar os olhos ou a boca’. Ambas se referem a experiências obscuras e indescritíveis, pois estão além da palavra e se relacionam com o mundo interior, em vez do exterior (...) Como a mitologia oculta essa dimensão interior, profunda, é natural que os místicos descrevam suas experiências em mitos que podem parecer, à primeira vista, inimigos da ortodoxia e sua tradição”, (...) que está “(...) especialmente claro na Cabala, a tradição mística judaica”.

Mas no século XVI de nossa própria Era, transformações sem precedentes na organização econômica – a revolução mercantil e capitalista – levaram a uma nova configuração das sociedades – primeiramente na Europa Ocidental e aos poucos no resto do mundo – e, simultaneamente, modificações na estrutura religiosa, com a emergência novas orientações do pensamento. Esta “modernidade” ocidental era filha direta da “logos”, afirmando o triunfo do “espírito científico pragmático” e baseando-se na “eficiência”. Os novos heróis não eram homens de espírito, mas inventores. A sensação de domínio do ambiente era maior e aumentava a percepção da incompatibilidade entre mito e logos.Em suma:

O logos científico e o mito se tornavam incompatíveis. Até então a ciência fora praticada dentro de uma mitologia abrangente que explicava sua importância. O matemático francês Blaise Pascal (1623-62), um homem profundamente religioso, enchia-se de horror ao contemplar o ‘silêncio eterno’ do universo infinito, aberto pela ciência moderna”.

Tão brusca separação entre “logos” e “mito” é problemática, no entanto. A crença em algo “superior” e a prática mística auxiliaram homens e mulheres a suportar a dor do mundo e encarar a realidade da extinção com menor desespero. Nosso mundo, sem o mito, não tem sido o melhor possível para todos os povos (vejam o Brasil, país do Terceiro Mundo) e está longe do prometido pelos iluministas do passado. Contrariamente ao previsto, as piores e mais dramáticas degradações da condição humana ocorreram no século XX e a irracionalidade se reveste das formas mais sombrias. Por isso, o que nos reservará o futuro senão a reconstrução do mito em bases mais sólidas, promovendo sua reconciliação com o “logos”. Aguardemos para ver.

Um comentário:

Nilson disse...

Bela questão. Não sei a resposta, o que era de se esperar! Belo texto!