Gurdjieff

Gurdjieff
Quem é Gurdjieff?

domingo, novembro 22, 2015

Monsieu Gurdjieff - Julius Evola

Monsieur Gurdjieff

Traduzido por CB , 22/11/2015 *

por Julius Evola (publicado pela primeira vez em Roma, 16 de abril de 1972; primeira publicação desta tradução francesa por Gérard Boulanger: A idade do ouro, primavera de 1987)



É raro que apareçam em nossa época – onde eles correm o risco de ser confundidos com certos mistificadores – personagens que nos façam tocar com o dedo, de maneira inquietante, isto a que foi reduzida, metafisicamente falando, a existência da grande maioria das pessoas.
A essa categoria pertence, sem qualquer sombra de dúvida, o “misterioso Senhor Gurdjieff”, a saber, George Ivanovitch Gurdjieff. A recordação de sua presença e da influência que exerceu é ainda viva, mesmo tendo morrido há muitos anos, como o testemunham as obras que lhe foram consagradas e mesmo os romances onde figura sob um outro nome. Louis Pauwels, o autor da Manhã dos Mágicos, pôde escrever um volume de mais de quinhentas páginas, objeto de duas edições sucessivas, no qual recolheu um grande número de documentos – artigos, cartas, lembranças, testemunhos – concernentes a ele. De fato, a influência de Gurdjieff se estendeu aos meios mais diversos: o filósofo Ouspensky (que a partir de sua doutrina, escreveu uma obra intitulada Fragmentos de um Ensinamento Desconhecido, assim como uma outra,  A Evolução Possível do Homem, da qual uma tradução italiana foi anunciada), os romancistas A. Huxley e A. Koestler, o arquiteto “funcionalista” Frank Lloyd Wright, J.B. Bennet, discípulo de Einstein, o doutor Wakey, um dos maiores cirurgiões nova-iorquinos, Georgette Leblanc, J. Sharp, fundador da revista The New Statement: todos tiveram com Gurdjieff contatos que deixaram traços.
Nosso personagem apareceu pela primeira vez em São Petersburgo, pouco antes da Revolução de outubro. Não sabemos grande coisa do que fez antes: ele mesmo se limitou a dizer que tinha viajado ao Oriente em busca de comunidades que depositavam os restos de um saber transcendente. Mas ao que parece, havia sido igualmente o principal agente tzarista no Tibete, que deixou para se abrigar no Cáucaso onde foi, quando criança, condiscípulo de Stalin. Na França, e em seguida em Paris, na Inglaterra e nos Estados Unidos, consagrou-se à organização de círculos que seguiam seus ensinamentos, círculos intitulados “grupos de trabalho”. Um editor francês que se retirou dos negócios lhe ofereceu em 1922 a possibilidade de fazer do chatêau d'Avon, próximo à Fontainebleau, sua “central” onde, em um primeiro momento, ele criou qualquer coisa como um exílio ou eremitério. Entre os boatos que circulam a respeito, alguns concernem ao domínio político. Gurdijieff havia tido contatos com Karl Haushofer, o fundador bem conhecido da “geopolítica”, que ocupou o primeiro plano no III Reich e, pretende-se mesmo que essas relações tenham presidido a escolha da cruz gamada como emblema do nacional-socialismo, cuja rotação se efetua, não em direção à direita, símbolo da sabedoria, mas à esquerda, símbolo do poder (como foi efetivamente o caso).
Que mensagem anunciou Gurdjieff? Uma mensagem ao menos desconcertante. Poucos homens “existem”, poucos têm uma alma “imortal”. Alguns dentre eles possuem o germe dela, que pode ser desenvolvido. Em regra geral, nós não possuímos um “Eu” de nascença: é necessário adquiri-lo. Aqueles que não o alcançam se dissolvem com sua morte. “Uma ínfima parte dentre eles chega a ter uma alma. ”
O homem na rua não é mais que uma simples máquina. Ele vive em estado de sono, como se hipnotizado. Ele crê agir, pensar, mas é “movido”. São os impulsos, os reflexos, as influências de toda ordem que atuam sobre ele. E não tem um “ser”. As maneiras de Gurdjieff não tinham nada de delicadas. “Você não pode compreender, você idiota completo, sua 'merdidade' ”, dizia ele em seu mau francês àqueles que dele se aproximavam. De Katharine Mansfield, morta durante sua estadia no eremitério d'Avon em busca da “via”, Gurdjieff declarou: “Eu não conheço”, querendo explicar por isto que a morte nada era, que ela não existia.

 A via ordinária é a a de um indivíduo continuamente aspirado, ou “sugado”, ensinava Gurdjieff. “Eu não sou aspirado pelos meus pensamentos, pelas lembranças, meus desejos, minhas sensações. Pelo bife que eu como, pelo cigarro que eu fumo, o amor que eu faço, os bons tempos, a chuva, a árvore, este veículo que passa, este livro. “Trata-se de reagir. De “despertar”. Então nascerá um “Eu” que, até então, não existia. Então ele aprenderá a ser, a ser dentro de tudo que ele faz e daquilo que se ressente, em lugar de representar mais que a sombra de si mesmo. Gurdjieff chamava “pensamento real”, “sensação real”, etc., isto que se manifesta de acordo com certa dimensão existencial absolutamente nova que a maioria das pessoas não podem nem mesmo imaginar. E ele distinguiu igualmente em alguns a “essência” da “pessoa”. A essência constitui a qualidade autêntica, a pessoa, o “indivíduo social”, construída de todas as peças, e exterior; estes dois elementos não são coincidentes, encontramos aqueles nos quais a “pessoa” é desenvolvida enquanto sua “essência” é nula ou atrofiada – e vice-versa. No nosso mundo, o primeiro caso prevalece; aquele de homens e mulheres cuja “pessoa” é exacerbada ao ponto de ser desmesurada, mas a essência está em um estado infantil – quando não é totalmente ausente.
Não é lugar aqui para evocar os procedimentos indicados por Gurdjieff para “despertar”, para se ancorar na essência. O que quer que seja, o ponto de partida seria o reconhecimento prático, experimental, de sua própria “inexistência”, este estado quase sonambúlico que faz com que sejamos “sugados” pelas coisas, por nossos pensamentos e nossas emoções. É igualmente a isto que serve o “método da desordem”: revolver a máquina que somos para tomar consciência do vazio que ela esconde. Não é preciso se surpreender se alguns dos que seguiram Gurdjieff nesta via foram levados a crises extremamente graves, perturbando seu equilíbrio mental ao ponto de fugirem ou de se afastarem com terror de experiências semelhantes nas quais tiveram experiências algo aproximadas com a impressão de viver a morte. Quanto àqueles que resistiram à prova e persistiram no “trabalho sobre si” junto a Gurdjieff, estes falam de um incomparável sentimento de segurança e de um novo sentido dando à sua sua existência.
Parecia que Gurdjieff exercia sobre quem quer que dele se aproximasse, de maneira quase automática e sem que o desejasse, uma influência que podia exercer efeitos positivos ou deletérios, segundo o caso. É fora de dúvida que possuía algumas faculdades supranormais. Ouspensky conta que recorrendo a uma ciência aprendida no Oriente, da qual no Ocidente não conhecemos “sequer uma parte insignificante sob o nome de hipnotismo”, Gurdjieff podia, graças a certas experiências, separar a “essência” da “pessoa” em um indivíduo dado – fazendo aparecer eventualmente a criança ou o idiota que se escondia por trás de qualquer indivíduo evoluído ou cultivado ou, inversamente, uma “essência” muito diferenciada a despeito da existência de manifestações exteriores.
Entre os testemunhos recolhidos por Pawels, há um particularmente picante relativo ao poder, atribuído igualmente no Oriente a certos iogues (e evocado por um autor digno de fé como Sir John Woodroffe), de “lembrar a fêmea à fêmea”. Aquele que conta a anedota se encontrava em Nova Iorque, em um restaurante, em companhia de uma jovem escritora muito segura dela mesma à qual mostrou o “famoso Gurdjieff, sentado em uma mesa vizinha. A jovem o mirou com um olhar de superioridade fixo, mas pouco tempo depois, ela se tornou pálida e parecia estar ao ponto de desfalecer. Isto deixou surpreso seu companheiro, que não conhecia essa grande mestra dela mesma. Mais tarde, ela lhe confessou isto: “É ignóbil! Eu olhei este homem e ele me surpreendeu. Ele apenas me observou friamente e, naquele momento, senti-me intimamente com uma tal precisão que experimentei o orgasmo! ”.
Gurdjieff se contentava com poucas horas de sono. Chamavam-no “aquele que não dorme”. Ele alternava um modo de vida quase espartano com banquetes de uma opulência russo-oriental desaparecida há muito tempo. Em 1934, foi vítima de um acidente automobilístico muito grave: ficou três dias em coma mas retomou a consciência e parecia ter rejuvenescido, como se o choque físico, no lugar de lesar seu organismo, o tivesse galvanizado. Numerosas coisas deste gênero correm por sua conta, nós mesmos as ouvimos diretamente, pela voz de um de seus próximos que dirigiu no México “grupos de trabalho” evocadas bem alto. Que seja bem entendido, um processo de mitificação é inevitável em casos desse gênero, e não é fácil separar a realidade do imaginário. Gurdjieff não deixou quase nada escrito e o que publicou é de qualidade suficientemente medíocre, mas é extremamente frequente que aquele que é “alguém” não tenha nem as qualidades nem a preparação para ser escritor: ele dá um ensinamento direto e exerce sua influência. Como já dissemos, à parte a coleção de testemunhos publicados por Pawels sob o título Senhor Gurdjieff, coube a Ouspensky escrever seus ensinamentos.
Gurdjieff morreu com a idade de oitenta e dois anos, em plena posse de seus meios e dizendo ironicamente aos discípulos que o assistiam: “Eu os deixo numa bela enrascada! ”
Ainda hoje, ele não cessa de ser citado e, como já dissemos, aqui e na Inglaterra, na França, na Africa do Sul, os restos dos grupos que foram constituídos sob sua influência subsistem.

www.gurdjieff.org para conhecer um pouco mais sobre G. Gurdjieff.

terça-feira, março 18, 2014

A Sabedoria das eras

 C.B.

“Primeiro de ouro, a raça dos homens mortais

criaram os imortais, que mantêm olímpias moradas

Eram do tempo de Cronos, quando no céu este reinava;
como deuses viviam, tendo despreocupado coração,
apartados, longe de penas e misérias.[i].


Há questões metafísicas que afligem sucessivas gerações de homens por séculos, impondo-lhes o desafio de buscar respostas para o dilema sempiterno representado pelo deslocamento entre sua dolorosa existência, de um lado; e as expectativas que lhes parecem inatas, de outro; concernentes à possibilidade de romperem as rígidas cadeias do sofrimento impostas pela vida neste planeta. Nas circunstâncias sob as quais vivem, a experiência da dor é a única que se lhes afigura enquanto algo palpável; não há outra realidade senão o pungente sentimento de vacuidade e impotência do seu pequeno “Eu” em relação ao “mundo”.  Mas, nem sempre, o homem se viu tão atarantado, enlouquecido, ao ponto de bipartir sua linha vital em dois segmentos conducentes à aniquilação total: o céu delusório do “nirvana” artificial ou o mergulho imprudente no vicio, afundando-se na própria natureza inferior.

A Sabedoria das Eras nos apontava um sentido geral de unidade entre o Homem Primordial e o Princípio Uno, Eterno, Imutável e Ilimitado que as diversas religiões conhecem por Deus, assumindo a vigência de uma ordem cósmica; refletida na Terra em aspectos perceptíveis aos sentidos humanos. O tempo era então uma criança, seus minutos eram contados como eternidade; era tempo cósmico, não linear. O estatuto humano era assegurado por colégios de sábios e iniciados cujos princípios insuflavam as instituições políticas, relações conjugais e sociais, credos estabelecidos; enfim, todo o espectro de ordenamentos envolvidos na interação entre cada membro particular de nossa linhagem e seus semelhantes.

Nas culturas de todos os povos, reminiscências dessa “Era de Ouro” são abundantes, assim como de sua dissolução progressiva, Naquela oitava superior da humanidade, o funcionamento rítmico e harmonioso das leis cósmicas em escala universal, tinha lugar, por correspondência, nas dimensões macroscópicas e microscópicas, convidando gentilmente o homem a integrar-se ao Todo e; mediante a observação silenciosa das maravilhas da criação que lhe descortinava, abria-lhe as portas da intuição, fazendo com que seu rosto mirasse os cimos. O Homem Primordial retinha no tesouro da memória a lembrança dos dias de sua juventude, quando anelava, em vão, adentrar o Éden, protegido pela terrível espada flamejante.

Nos primórdios da civilização, o homem nascia, labutava e morria sob a contemplação de um horizonte normativo que brilhava diante de seus olhos como algo tão assombroso e espetacular quanto o nascer do sol e o crepúsculo, o farfalhar das ondas, os flagelos marítimos ou o movimento periódico dos grandes luminares; o Sol e a Lua no céu visível. Seguro, pleno, confiante em que o futuro seria mais que o passado e, o presente, um instante no qual deveria envidar esforços para cumprir seu dever, o indivíduo cumpria suas obrigações (Dharma), executando suas ações conforme prescrevia a Lei.

“Este ritmo “Deus-homem”, uma ascensão repentina, seguida de uma decadência gradual – o resultado do que está acima do tempo com o que está sujeito ao tempo – pode ser descrito, para usar as estações do ano, como uma súbita primavera que avança para o verão, seguido de um gradual outono”[i].

Fortalecido, abrigado em um corpo coletivo organicamente equilibrado, o homem não se sentia só ou isolado na comunidade, apequenado, como hoje se vê, tal qual um verme parasitário perdido no universo. Sua passagem pela terra não era concebida como estéril diversão e, embora cônscio da finitude da vida e caráter imanente da morte, acalentava a esperança da sobrevivência vindoura, ao lado de seus deuses tutelares e entes próximos, transitoriamente ceifados com o rigor e a beleza que são os tronos temporais do poder divino.

Os homens viviam pacíficos, interna e externamente, até que, em dado ponto no tempo, ocorreu aguda inflexão no conjunto dos padrões que sustentavam sua existência. Gradativamente, valores se relativizaram, panteões adquiriram traços humanos, ritos se ossificaram, a cultura e os elementos tradicionais, repetidamente, viram-se seriamente abalados: a tradição fora pulverizada, a ordem, subvertida. No decurso de outros tantos ciclos e subciclos involutivos, a recordação da Idade de Ouro transfigurou-se em imagem opaca, disforme e distante. Ingressava-se na longa noite da humanidade: a Idade de Ferro.

Prolongado, o período a que nos referimos não pode ser desagregado, satisfatoriamente, em seus componentes principais, tendo de ser visto; porém, como a erupção tempestuosa de agressivos instintos no homem, acompanhados pela eclosão das catástrofes da fome e da guerra intestina entre as nações. Institutos políticos e sociais, antes robustos, são adulterados; a cultura é solapada e triunfam universalmente a vulgaridade e o desprezo pelas prodigiosas obras de arte que reverberam, ainda que fracamente, os ecos das glórias pregressas. O sentido da ordem, esmigalhado pela efervescência das paixões mais brutais, origina ilusões nos homens sobre sua autoimportância, infundindo-lhes insensato senso de autonomia e o desatino de julgarem-se “donos” de todos os direitos e isentos de deveres.

Confiante em suas forças inatas, o homem, à mercê do jogo da vida, crê ser o tirano de si próprio, uma divindade; mas, ao contrário, faz-se duende, diminuto e risível. Semelhante fenômeno veio a assumir tonalidades ainda mais sombrias, na medida em que as pútridas nuvens da dissolução atingiram a etapa atual do curso da humanidade, pairando como um monturo infecto sobre enorme, compacta e tresloucada massa informe, amontoada nos currais chamados de “grandes centros urbanos”, “capitais” e “metrópoles”.

Dois versículos de Gênesis quatro sintetizam todo o drama humano, encenado por atores ébrios na câmara tenebrosa das modernas sociedades:
" 1. Conheceu Adão a Eva, sua mulher; ela concebeu e, tendo dado a luz a Caim, disse: Alcancei do Senhor um varão. 2. Tornou a dar a luz a um filho - a seu irmão Abel. Abel foi pastor de ovelhas, e Caim foi lavrador da terra".

Com efeito, nos derradeiros quatro séculos, substancial e impetuosa transformação das estruturas econômicas do Ocidente (e, logo após, do globo como um todo), provocou alterações correspondentes às suas novas necessidades nas instituições e na sociedade, engendrando outros arcabouços legais e outro Estatuto Humano; exótico, posto que não mais fundado nos tronos do rigor e da beleza, adornos do poder divino nos planos sutis, mas no poder temporal.

 “11 Agora maldito és tu desde a terra, que abriu a sua boca para da tua mão receber o sangue de teu irmão.
12 Quando lavrares a terra, não te dará mais a sua força; fugitivo e vagabundo serás na terra.
13 Então disse Caim ao Senhor: É maior a minha punição do que a que eu possa suportar.
14 Eis que hoje me lanças da face da terra; também da tua presença ficarei escondido; serei fugitivo e vagabundo na terra; e qualquer que me encontrar matar-me-á.
15 O Senhor, porém, lhe disse: Portanto quem matar a Caim, sete vezes sobre ele cairá a vingança. E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que não o ferisse quem quer que o encontrasse”.

Com o aumento prodigioso da acumulação de recursos, a desorganização do campo, a expulsão dos camponeses em direção aos núcleos urbanos e o advento de uma produção mecanizada e concentrada no espaço, a maldição do sedentário lavrador Caim assumiu contornos grotescos, próximos ao paroxismo, no que nos cabe admitir, como Cioran[ii], enraízam-se em desespero terminal.

“Dentre as múltiplas formas do grotesco, a que me parece mais estranha e complicada é aquela que tem raízes no desespero. As outras visam a um paroxismo de natureza periférica. O grotesco, porém, e isso é importante, não pode ser concebido sem paroxismo. E que outro paroxismo é mais profundo e mais orgânico do que o do desespero? O grotesco surge apenas no paroxismo dos estados negativos, quando grandes tormentos brotam a partir de um déficit de vida; trata-se de uma exaltação em negatividade”.

Amontoados como peças, objetos descartáveis, os homens são sobressaltados a contragosto por distúrbios somáticos e anímicos. Dentre os últimos sobressaem-se a depressão e a melancolia em suas diversas modalidades, associada, a primeira, à profunda constatação da falta de sentido na vida; a segunda, a uma espécie de contemplação estética desinteressada e abúlica da miséria humana, entremeada com o gozo fortuito e o consumo de lenitivos para a dor; drogas físicas ou “espirituais”.

“Ao lado das doenças somáticas, que conhecemos há séculos, e das doenças psíquicas, identificadas mais recentemente, devem existir outras, de ordem superior, às quais chamaremos de doenças do espírito. Nenhuma neurose poderia explicar o desespero do Eclesiastes, o sentimento de nosso exílio na Terra ou de nossa alienação, o tédio metafísico, a consciência do vazio e do absurdo, a hipertrofia do eu ou a revolta sem objetivo; nenhuma psicose poderia explicar o “furor” econômico ou político, a arte abstrata, o “demonismo técnico, nem talvez aquele formalismo extremo que hoje em dia, em todos os domínios da cultura, consagra o primado da exatidão sobre a verdade”[iii].

Uma vez lançado no mundo, desacorrentado do que equivocadamente julgava uma ordem tirânica - imposição dos reinos seculares e do cosmos - o homem, repentinamente, atinou que era privado do sentido da existência. Enganara-se, quiçá irremediavelmente. Como os liames entre sua alma e o infinito são indissociáveis, a impossibilidade prática de negar o destino que lhe é reservado se impôs. O que fez então?  Procurou narcóticos e remédios inadequados, oferecidos por médicos de reputação duvidosa, saltimbancos que pudessem distraí-lo, ainda que momentaneamente, ou preceptores falastrões que lhe assegurassem felicidade certa e longa vida.

E o que ganhou o homem ao agir assim? Nada mais que símiles desbotados do paraíso perdido, encantamentos fugazes produzidos pelo aroma de buquês de flores que, repentinamente, metamorfoseadas em lépidas najas, saltam com presas afiadas sobre a pobre e infeliz vítima, para deboche do ilusionista que a ludibriara.





[i] LINGS, Martin. Sabedoria tradicional e superstições modernas. São Paulo, Ed. Polar, 1998.

[ii] CIORAN, Emil. Nos cumes do desespero. São Paulo: Ed. Hedra, 2012. p.30.

[iii] NOICA, Constantin. As seis doenças do espírito contemporâneo. Rio de Janeiro: Ed. BestBolso, 2011, p. 19.

quarta-feira, março 12, 2014

O implante dentário e um lampejo de si mesmo


Submeter o paciente a um implante de dentes equivale a descer da condição do "Homem-Massa" de Ortega y Gasset ao "Homem-Máquina" de Gurdjieff, regredi-lo conceitualmente a um ser mecânico, para o qual tudo acontece, tudo se se manifesta exteriormente. 

O dentista manuseia instrumentos lúgubres, invisíveis, ruidosos; não podemos divisá-los com acuidade; mas o paladar; azedado com saliva, sangue e pus; o tato não completamente amortecido; e, sobretudo a audição, incólume; - aliados à percepção naquele ambiente hostil dos "sentidos comuns" do movimento, repouso, figura e grandeza. 

A seringa amiga não refrea inteiramente a constatação da dor. Ouvimos o doutor dizer à assistente, "Pega a broca!"; de pronto, instala-se o pânico. Arrancam-se as carnes das gengivas com força tamanha que o maxilar afrouxa; não controlamos os lábios; na mente rodopiam fantasias, formam-se imagens desconexas que informam o corpo anestesiado da agressão iminente. 

De fato, o pedacinho de osso que restou do primeiro molar é perfurado; mas, isto não é suficiente: é necessário desbastá-lo como a "pedra bruta" de um Aprendiz Maçom. O rijo sobrevivente em sua cadeira é posto ao lado do Trono do Vigilante, o dentista, o aprendiz ignorante, perfila seus instrumentos; não o maço e o cinzel; mas o broca e agulha que lhe cabem em sua etapa iniciática, coisa ainda mais apavorante para o objeto do obreiro odontológico que as estórias macabras de convescotes satânicos. 

Terminado o serviço, o cirurgião, sorri, com a dentição saudável exposta ante a miséria alheia e; ainda, declara em tom elogioso, sem galhofa, sincero também na sua rotina: "Nunca vi osso mais forte que o seu".



Explicação

Muito frequentemente, em momentos singulares - costumeiramente naquelas ocasiões em que o homem tem estimulado em mais alto grau o senso instintivo - pode-se produzir uma rara unidade dos sentidos que nos dá notícia de nós mesmos. Ainda que fragmentária, ela, a nova informação, condensa uma verdade sobre o nosso "todo" de forma sintética. Estuda a ti mesmo, observa-te e conhece-te; são estes os passos no cotidiano, não circunstanciais pois exigem disciplina e constância.

quinta-feira, março 06, 2014

Constantin Noica e as seis doenças do espírito contemporâneo




Vejo ainda um dado límpido que um grande homem não pode ser imitado. No entanto, o humanismo sonha com isto: oferecer protótipos que sejam, de um modo ou de outro, imitados. Mas é suprema a absurdidade da pedagogia. Pois nem ao menos numa vida de santo não há nada ‘exemplar’, não há nada a imitar. Se não se realiza por conta própria, qualquer vida é um insucesso, uma dilação. (1)

 “E se foi possível ver no homem o “ser doente do universo”, foi provavelmente por causa dessas seis doenças, não por seus males físicos nem por suas neuroses. Naturalmente, elas ainda não tinham sido denominadas, e talvez não tivessem sido claramente relacionadas com as “crises” espirituais do homem; parece-nos, todavia, que é precisamente delas que sempre se falou, pois, como quer que seja, só elas – sendo constitutivas do homem – nos podem autorizar a dizer que ele é um “ser doente”. (2)

O filósofo romeno CONSTANTIN NOICA (Vitănești -Teleorman 12/25 de julho de 1909-Sibiu, 4 de dezembro de 1987) é ainda pouco lido no Brasil, mas talvez, no século XX, nenhum outro pensador além dele pôde compreender em todas as suas implicações a vasta dimensão do drama humano, ao vasculhar em sua obra de maturidade “As seis doenças do espírito contemporâneo” as “diferentes relações que têm entre si os traços definidores de todo ser, de toda realidade existente: a individualidade, a generalidade e as determinações que situam a individualidade na generalidade”, conforme pontifica o professor Olavo de Carvalho, responsável pela introdução, edição e notas da publicação em língua portuguesa. (3)

Utilizando um quadro clínico como alegoria dos dilemas que acometem o homem, Noica formulou uma tipologia de sintomas que identificam suas doenças de espírito, superiores às somáticas e às psíquicas, pois:
Nenhuma neurose poderia explicar o desespero do Eclesiastes, o sentimento de nosso exílio na Terra ou de nossa alienação, o tédio metafísico, a consciência do vazio e do absurdo, a hipertrofia do eu ou a revolta sem objetivo; nenhuma psicose poderia explicar o “furor” econômico ou político, a arte abstrata, o “demonismo” técnico, nem talvez aquele formalismo extremo que hoje em dia, em todos os domínios da cultura, consagra o primado da exatidão sobre a verdade”. (4).

As doenças de espírito são doenças ônticas, aquelas que verdadeiramente constituem o homem, pois o ser também pode adoecer, sendo “afetado nas coisas viventes e inanimadas, estas permanecem secretamente bloqueadas por uma dessas doenças, que no entanto se dissimulam por trás da aparente estabilidade das coisas; mas, se é atingido no homem, este último, graças á sua instabilidade superior, revela a sua doença à plena luz do dia”. A primeira dessas enfermidades é a carência do individual, a todedite.

“Esse homem irá, como todos, respirar, mas o ar que irá respirar será condicionado e “geral”, não este determinado ar de sua terra, cujo odor ele tão bem não sabia reconhecer; ele se alimentará, por certo, mas, ali também, de substâncias gerais; ele se esforçará, como sempre, na vida do conhecimento, mas se interessará antes pela essência do que pelas realidades particulares; e se alguma planta ainda o puder deslumbrar, ela terá certamente brotado numa estufa. Em parte alguma do cosmos ele reencontrará aquela realidade individual, o sabor particular “desta coisa aqui”, o tode-ti do filósofo grego, cuja ausência nos faz sofrer bem mais do que a imperfeição. Tanto ele como as coisas que o rodeiam já não terão realidade particular. Por isso ele deverá, de tempos em tempos, voltar à terra para curar sua todetite”. (5)

A segunda das enfermidades a acossar o homem é a carência do geral, a necessidade de encontrar o individual autêntico dá origem a seu oposto, “a doença em que o sofrimento não vem da carência do individual, mas ao contrário, da do geral. Se apelarmos de novo para  a língua grega, o “geral”, Kathoulou, lhe dar seu nome: catolite”. Esta merece tratamento à parte, uma vez que engolfa indistintamente toda a humanidade, ou:

Em certo sentido, a catolite é a doença espiritual típica do ser humano, tão atormentado pela obsessão de se elevar a uma forma de universalidade. Quando, por um gesto elementar de lucidez, o homem desperta da hipnose dos sentidos comuns que geralmente o manobram – no interesse, aliás, da espécie e da sociedade –, ele busca por todos os meios curar de sua amargura de ser uma simples existência individual sem nenhuma significação de ordem geral. Ele busca então, mediante a maior parte de seus engajamentos deliberados, apoderar-se dos sentidos gerais. Com muita frequência, cai na armadilha dos sentidos prontos (como as “ideologias” de seu tempo), que não são senão falsos remédios, incapazes de curar seu mal em profundidade. Por isso, quando o homem – até o mais medíocre – prolonga seu gesto de lucidez por tempo suficientemente longo para perceber a futilidade do geral a que se devotou, sua catolite retoma toda a sua virulência”.(6)

Outra doença se relaciona às determinações do ser e explica o horror do homem que não pode agir em conformidade com seu próprio pensamento e suas convicções, a horetite ou carência de determinações. Neste caso,

“... além de um geral e de um individual, o ser, para se realizar, também tem necessidade de determinações adequadas, isto é, de manifestações que possam harmonizar-se tanto com sua realidade individual como com o sentido geral a que tente. E já que a doença é provocada pela impossibilidade de obter tais determinações, poderia-se denominá-la horetite, tendo em mente o grego horos, que signfica “termo”,”determinação”. Essa doença exprimiria então os tormentos e a exasperação do homem por não poder agir de acordo com seu próprio pensamento e suas convicções”.(7)

Às doenças que acarretam desregramentos de ordem geral no espírito, seguem-se aquelas que se juntam ao repertório patalógico de Noica e se apresentam como fruto não da carência, mas da recusa de um aspecto particular do ser, de um dos seus três termos constitutivos, possuindo aspecto iminentemente privativo: a acatolia, atodecia e ahorecia. Mais estranhas que as primeiras, elas são ilustradas pelo filósofo romeno na cultura como “espelho ampliador de nossa vida espiritual”. O quadro abaixo, adaptado de NOICA (2011), associa cada uma dessas doenças de “carência” e “recusa” a exemplos na esfera da criação literária.


AS SEIS DOENÇAS DO ESPÍRITO CONTEMPORÂNEO – EXEMPLOS NA ESFERA DA CULTURA
Causa imediata
RECUSA
CARÊNCIA
Necessidade não atendida
Doença - Exemplo
Doença - Exemplo
Generalidade
Individualidade
Determinações
1.       Acatolia  D. Juan
2.       Atodecia – Tolstoi
3.       Ahorecia - Godot
4.       Catolite  Birotteau
5.       Todetite  Os demônios
6.       Horetite  D. Quixote
Fonte: NOICA (2011)

Cabe aqui como resumo das peculiaridades das doenças do espírito repetir, enfim, as palavras do próprio Noica:

Diferentemente das doenças comuns, que provocadas por circunstâncias e agentes os mais variados, são inumeráveis, as doenças de ordem superior, do espírito, não são mais que seis, pois refletem as seis precariedade possíveis do ser.
A primeira nasce da precariedade da ordem geral numa realidade individual provida de suas determinações. È no homem, a catolite.
A segunda, deve-se á precariedade de uma realidade individual que deveria assumir as determinações inscritas numa ordem geral: É a todedite.
A terceira situação ontológica é provocada pela carência de determinações apropriadas de uma realidade geral que tem já sua forma individual: È a horetite.
A quarta apresenta-se como o oposto simétrico da precedente: aqui o individual que, após ter alcançado um sentido geral, é incapaz (ou o recusa, no caso do homem) de se dar determinações específicas. É a ahorecia.
A quinta delas porovém da precariedade – e no homem, da incompreensão – de toda realidade individual em harmonia com um geral que já se teria especificado graças a determinações várias. É a atodecia.
Por fim, a sexta precariedade do ser projeta (de modo deliberado, no homem) numa realidade individual, determinações que não se apoiam em nenhum sentido geral: É a acatolia”.


BIBLIOGRAFIA

NOICA, Constantin. Diário filosófico. São Paulo: É Realizações, 2011. A
_______________. As seis doenças do espírito contemporâneo. Rio de Janeiro: Ed. BestBolso, 2011. B

NOTAS

1.  NOICA, Constantin (A), p. 80
2. NOICA, Constantin (B), p. 44.
3. Prefácio de Olavo de Carvalho (NOICA, Constantin. As seis doenças do espírito contemporâneo. Rio de Janeiro: Ed. BestBolso, 2011.
4. NOICA, Constantin (B), p. 19.
5. Ibidem, p. 22.
6. Ibidem, p. 23.
7. Ibidem, p. 24.

8. Ibidem, p. 44.

terça-feira, fevereiro 25, 2014

Em busca de sentido


Wiktor E. Frankl (1905-1997) foi professor de Neurologia e Psiquiatria na Universidade de Viena, tendo sido aprisionado e sujeito a trabalhos forçados, durante anos, nos centros de extermínio do Reich nazista. Naquele período, formulou a seguinte pergunta: “De que modo se refletia na mente do prisioneiro médio a vida cotidiana no campo de concentração?”. Assim, descreveu uma pletora de observações sobre si mesmo e sobre seus companheiros, perceptíveis em três fases características de reações psicológicas de homens e mulheres encarcerados, sujeitos à brutalidade permanente, à fome e ao terror: a fase de recepção no campo, a fase da vida em si no campo de concentração e a fase após a soltura, ou melhor, da libertação do campo. Desse estudo inovador surgiu a “terceira escola vienense de psicoterapia” (ao lado da Psicánalise de Freud e da Psicologia Individual de Adler), ou Logoterapia.

Comparada à psicanálise, a proposta de Adler e dos pesquisadores da escola logoterapêutica é menos introspectiva e menos retrospectiva, concentrando-se no futuro e nos sentidos a serem realizados pelo paciente. Este é levado a quebrar seu autocentrismo, sendo então confrontado e reorientado, criando-se um novo padrão de sentido e responsabilidade. “Para a Logoterapia, a busca de sentido na vida da pessoa é a principal força motivadora no ser humano. Por essa razão costumo falar da uma vontade de sentido, a contrastar com o princípio do prazer (ou, como também poderíamos chamá-lo, a vontade de prazer), no qual repousa a psicanálise freudiana, e contrastando ainda com a vontade de poder, enfatizada pela psicologia adleriana através do uso do termo “busca de superidade”.

A busca de sentido por parte do indivíduo se apresenta como motivação primária em sua vida, e não como uma “racionalização secundária” de impulsos instintivos. Extraindo suas lições de vida, não apenas dos livros e dos divãs, a Logoterapia não atribui à vida um “sentido geral”, mas foca o seu sentido específico para cada pessoa, em dado momento. A existência humana não tem um sentido abstrato, “cada qual tem sua própria vocação ou missão específica na vida; cada um precisa executar uma tarefa concreta que está a exigir realização”.

Em última instância, cada situação na vida constitui um desafio para as pessoas, um problema a resolver. Para Frankl, os indivíduos não deveriam perguntar pelo sentido da vida, mas reconhecer que eles, de fato, são indagados por ela. “Em suma, cada pessoa é questionada pela vida; e ela somente pode responder à vida respondendo por sua própria vida; à vida ela somente pode somente responder sendo responsável. Assim a Logoterapia vê na responsabilidade (responsibleness) a essência propriamente dita da existência humana”.

O imperativo categórico dessa escola é “Viva como se já estivesse vivendo pela segunda vez, e como se na primeira vez você tivesse agido tão errado como está prestes a agir agora”. O sentido da vida pode ser descoberto então de três formas: a) criando um trabalho ou praticando um ato; b) experimentando algo ou encontrando alguém; c) tomando uma atitude em relação ao sofrimento inevitável. A primeira, o “caminho da realização” é óbvia. As duas últimas requerem o entendimento do sentido do amor e do sofrimento; a consciência plena da essência última do outro e a transformação de nosso sofrimento em uma conquista humana.


FRANKL, Viktor. Em busca de sentido. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes., 2008. 34ª Ed. 184 p.

segunda-feira, outubro 21, 2013

A Revolução dos Beagles


A invasão do Instituto Royal para “salvar” "Beagles" em cativeiro (ontem, domingo, dois delas foram encontrados vagando nas ruas o que denota um pouquinho do compromisso “animalnitário” dos seus salvadores) é um exemplo de correta preocupação com a sorte dos bichos, dissolvida em autopromoção de subcelebridades, banditismo puro e simples violência gratuita. Entrar na velha discussão da validade dos testes com animais demandaria um certo número de páginas que não estou disposto a escrever hoje e para ser bem sucinto repito a surrada fórmula: se aquelas pessoas são tão comprometidas assim (a ponto de derramarem lágrimas neuróticas na TV) com o destino dos "Beagles" em particular e dos animais em geral, por que não abrem mão de uma vez por todas de suas roupas, sapatos, alimentos, cosméticos e milhares de produtos que não só necessitam das pesquisas com seres vivos como demandam insumos de origem animal? 

Sou um dos defensores do ponto de vista de que a sociedade do futuro deverá mudar sua visão "coisificada" dos animais, o que dependerá não de ações tresloucadas com “Bloc Bocs” como seguranças, mas da busca de substitutos aos testes com seres vivos e sua normatização. Enquanto não me sinto disposto a escrever sobre assunto tão específico e complexo (tem gente parva que é capaz de produzir um argumento no Facebook à guisa de "última palavra" sobre a questão), volto a um tema que sempre a vem calhar nestas horas por favorecer interessantes paralelos com a "revolução dos Beagles" em curso no Brasil, o vegetarianismo.

Afinal de contas, se o sofrimento de um cão ao longe comove tão profundamente grande parte dessa gente, um suculento bife com fritos lhes parece bem-vindo.

Particularmente, aprecio e animais e os defendo e durante muito tempo não só estudei como pratiquei o vegetarianismo, o que pode parecer incrível para quem me vê hoje. O que me fez mudar de opinião em relação ao tema foi uma viagem à Bolívia e Peru há muitos anos, locais em que permaneci por 45 dias nas piores circunstâncias, como um aventureiro. Percebi que não havia praticamente alternativas de alimentação na Altitude (sobretudo na Bolívia) e fui obrigado a comer carne. Este foi o meu primeiro momento de reflexão. O segundo se deu quando descobri que monges tibetanos comem carne e leite e que a propalada tese de que todos os indianos e budistas não se alimentavam de proteína animal, o que é claramente falso. Aliás, o Tibete também é muito alto e em países como a China se comem até escorpiões uma vez que o interior é pouquíssimo agricultável e as margens dos grandes rios em que surgiu a civilização chinesa é superpovoada.

Ainda adolescente havia lido o livro "Vegetarianismo e Ocultismo" de Charles E. Leadbeater e Annie Besant, empolgando-me com as profundas convicções vegetarianas de ambos. Pouco antes os autores haviam se deslocado para Chicago (US) para uma ciclo de palestras e uma pesada e pestilenta atmosfera exalava dos abatedouros (a pioneira indústria de carnes americana) e fora percebida com muito desagrado pelos dois pretensos clarividentes. Entretanto, anos mais tarde, ao estudar  os verdadeiros escritos de sábios hindus notei que falavam de algo bem distinto do "vegetarianismo" cujas linhas gerais era propugnado por correntes da "Nova Era", tratando-se antes da distinção entre alimentos tamásicos, rajásicos e sattwicos, isto é, aqueles em que predominam cada uma das três "gunas" ou "modos do Ser" que teosofistas entendem de forma mais restrita como qualidades da matéria (um princípio de inércia (tamas), atividade (rajas) e equilíbrio (sattwa)). O que os Rishis e Iogues hindus advogavam era a proposição de que, no início da sua senda, era aconselhável (senão impositivo) ao "Lanu" (discípulo) que substituísse comidas mais "pesadas" (tamásicas) como a carne (ou a ingestão de bebidas alcoólicas) outras de ter mais "leve", verduras, legumes e mesmo leite ou queijos. E este era um caminho prescrito não para toda a sociedade mas apenas para uma pequena fração que percorre através dessas práticas o seu caminho espiritual. Nesse sentido, aliás, não é uma regra muito diferente de outras tradições espirituais.

A raiz profunda de qualquer tese vegetariana (em que pesem as patuscadas ridículas da "Nova Era") é a objeção decidida à dor infligida a qualquer animal senciente; um princípio não só do ensinamento oriental mas presente - em maior ou menor grau e mais explícito em algumas que em outras - na maioria das perspectivas religiosas. No primeiro linha (a oriental) é traduzido em "Ahimsa", ou "não-violência". No budismo, em "compaixão" (também um dever cristão), ou profunda atenção a todos os que sofrem. Mas será que os ativistas dos "direitos dos animais" e os arruaceiros que se juntaram àquela ação pontual agiram com plena compaixão e não fizeram com que alguém sofresse? Será que no estágio atual de desenvolvimento da sociedade a pesquisa de novos e úteis medicamentos (não falo de cosméticos, pressuponho generosamente que a Luísa Mell não os utiliza) já pode prescindir do emprego de cobaias? Em segundo lugar: o ato perpetrado pelos manifestantes também não carrega enorme dose de violência? Digo isto, não só por pelo fato de equipamentos terem sido equipamentos como também por concorrer para o aumento da dor e sofrimento futuro em incontáveis pacientes?. 

Fica aqui minha modesta contribuição ao debate.

quinta-feira, maio 23, 2013

Felicidade e Qualidade de Vida

Felicidade e Qualidade de Vida



Sentidos da Felicidade

Pouquíssimas palavras são tão mal compreendidas quanto “felicidade”. Trocam-se os fins pelos meios e julga-se feliz aquele que satisfaz seus desejos mais imediatos, usufruindo do que imagina serem os “prazeres da vida”. Mas o alcance da felicidade vai muito além da compra de uma nova TV de plasma ou de um carro novo. Quantos de nós conhecemos em nosso círculo de parentes e amigos, pessoas bem sucedidas, financeiramente estáveis e inseridas em estruturas familiares ou em redes sociais que correspondem ao nosso estereótipo de felicidade? Mas serão elas realmente felizes? Ninguém sabe dizê-lo, pois a felicidade, antes de tudo é uma disposição interior de espírito. Em segundo lugar, há indícios de que este estado não está relacionado a fatores como posse, poder, atividade desenfreada (como a obsessão por exercícios físicos, aventuras, viagens sem fim e êxito nos negócios) ou qualquer fator exterior. Na sociedade contemporânea, o forte incentivo à competição e ao ganho monetário é outro empecilho de monta à conquista da verdadeira felicidade, e fonte primordial da angústia que afeta o homem.
Mesmo estes prosaicos filósofos da natureza, os economistas, têm se envolvido com o espinhoso desafio de contemplar a felicidade em seus modelos. Em 1972, um país da Ásia chamado Butão foi pioneiro ao calcular um índice de “Felicidade Interna Bruta” (FIB) que - ao contrário do “Produto Interno Bruto” - incorpora algumas dimensões do ser humano ignoradas solenemente nas medidas “físicas” do bem estar (1). Seu objetivo era criar um indicador adaptado à cultura do país, capaz de evidenciar que ele não era tão pobre quanto se pensava (pois o cômputo apenas da produção de bens e serviços não dava conta de toda a sua riqueza espiritual e cultural).
De fato, muito da percepção limitada que temos da felicidade decorre da ignorância de suas origens etimológicas. Nessa palavra o morfema “feliz” provém de “Fe”, uma raiz latina derivada do indo-europeu “Dhe” que, por sua vez quer dizer “mamar” ou “sugar”. Entre os antigos gregos, o vocábulo “eudaimonia” ou “que tem um poder divino (daimon) bem disposto (eu)” era o que mais se aproximava do que atualmente assinalamos como felicidade, sendo tida como um favor divino e relacionada à prosperidade. Como não pretendemos crer que nossos ancestrais nos séculos IV e V A.C. raciocinavam à maneira reducionista e grosseira dos contemporâneos, optamos por assumir que a primeira interpretação (da boa disposição do poder divino no homem) melhor traduz a acepção clássica de felicidade.
Ademais, no seio da Grécia havia vozes discordantes que relativizavam a segunda opinião, como Eurípedes que vaticinou em sua célebre “Medeia”: “Nenhum homem é feliz (eudaimon) (2). Se a prosperidade (olbos) vem até ele, ele pode ter mais sorte (eutyches) que outros homens, mas feliz, ele não é”. Na Roma do Império, por sua vez, “Felicîtas” (felicidade) era a personificação de uma antiga deusa, usualmente impressa em moedas e que celebrava a boa sorte e o sucesso. Não sem generosa dose de boa vontade, entendemos que aquela deidade simbolizava o fato de que adquirir um bom resultado (ou ter êxito) pressupõe um ponto de origem (o estado atual) e destino (o
estado futuro). Mas para triunfar é preciso percorrer um caminho até a meta. É preciso esforço para ser feliz. Mesmo sob pena de nos atermos quesito tão “materialista” (o êxito ou o sucesso), esta idéia do esforço nos parece uma das mais profícuas chaves dos mistérios da felicidad (3).

Com efeito, filósofos romanos como Sêneca sentenciavam que “(...) todos querem viver felizes, mas não têm a capacidade de ver perfeitamente o que torna a vida feliz. Realmente não é fácil atingir a felicidade, porque, se alguém desviado do reto caminho se precipita para alcançá-la, fica sempre mais afastado da realidade” (4). A felicidade, portanto, comportava mais que retenção de dinheiro ou o dar livre curso às paixões, a simples “alegria” ou o contentamento transitório e não permanente. Era uma inclinação do homem, pois “(...) uma alma reta nunca se transforma nem é odiosa a si mesma, em nada se afasta do melhor modo de viver; o prazer, porém, extingue-se justamente quanto mais deleita, o seu campo não é muito amplo e, por isso, logo sacia, causa tédio e definha depois do primeiro impulso”.

Mais profunda e visceral ainda é a interpretação da felicidade entre as milenares escolas filosóficas e tradições espirituais hindus. Com todas as dificuldades em verter o idioma sânscrito para as línguas ocidentais, o que mais se aproxima da felicidade real e que pode ser experimentada pelo Ser humano é Sat-Chit-Ananda, a tríade existência, sabedoria e bem-aventurança. Ananda ou beatitude (a condição de fato feliz da existência) vem a ser a suprema autorrealização do homem e sua fusão no oceano do divino.

Na prática, por assim dizer, tal experiência tem a ver com aquelas raras circunstâncias em que o homem encontra o divino - não como algo externo a si mesmo - ; mas como uma realidade interna, entregando-se sem limites à contemplação do Todo, Uno ou, simplesmente, Deus. Este momento especial não é privilégio de um punhado de homens e mulheres abnegados. Pode ser experimentado por todos e muitas vezes não nos damos conta daqueles breves instantes em que a intuição nos impele a percepções mais refinadas do ambiente e de nossa relação conosco mesmos e o Universo (5).

Para certos grupos islâmicos como os sufis ou os praticantes Zen budistas um dos atalhos para a “iluminação” (um dos sinônimos de autorrealização) reside nos efeitos instantâneos de alguns acontecimentos fortuitos sobre o sujeito que os experiência. Uma abelha pousando sobre uma pequena flor a desabrochar, gotas de orvalho na relva ou o coaxar de um sapo são suficientes para provocar-lhe uma clara antevisão da beleza do mundo. È o mesmo que dizer - como o fazem certos místicos - que “conhecemos a Deus por seus sinais”(6) e a sintonia com a natureza é um caminho simples e comumente menosprezado para a felicidade suprema.

Outrossim, existem outros campos em que a sensibilidade pode ser apurada , abrindo-se mais uma porta para a autorrealização. Manifestações artísticas como a dança, a poesia, a música e outras também contribuem para assegurar-nos uma vida plena de significado, como bem lembrou uma amiga que, gentilmente, revisou meu texto original. E ela está coberta de razão. O homem que ao longo de seu extenso período de vida (pois entre milhares de espécies a nossa é uma das mais longevas) priva-se de arte é um indivíduo truncado, um pobre coitado cuja alma pode ter se atrofiado definitiva e irremediavelmente.

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*Agradeço a colaboração dos amigos Sylvio de Queiroz Mattoso, Fernanda Duayer Picardi e Nilson Galvão que, gentilmente, revisaram e apresentaram sugestões ao texto. Não suponham pela leitura do ensaio que eu mesmo tenha alcançado o estado de espírito sobre o qual me debruço aqui. Entre falar da felicidade e ser feliz há um longo e penoso caminho.

1 Como o PIB, que é simplesmente o somatório dos preços de todos os bens e serviços vendidos a preços de mercado em determinado período do tempo.
2 LAURIOLA, Rosana. De eudaimonia à felicidade. Visão geral do conceito de felicidade na antiga cultura grega, com alguns vislumbres dos tempos modernos. Revista Espaço Acadêmica no 59, abril de 2006.
3 O homem se fosse sábio ergueria templos ao esforço. Mas aonde quer que ele seja valorizado no mundo, jamais o é como uma das mais importantes forças cósmicas nos planos material ou espiritual, porém amesquinhado a tal ponto que se viu banido de toda reflexão filosófica de fôlego.
4 SENECA, Lucius Anneus. Da vida feliz. São Paulo, Martins Fontes, 2001.
5 No sufismo ou mística islâmica este modo de ver as coisas é pronunciado. “O coração do sufismo "estánum hadith" (sentença) de Mohamed: ‘Adora a Deus como se o visses, pois mesmo que tu não O vejas, Ele na verdade sempre te vê’. Os fukará procuram assim agir sempre como se estivessem na presença de Deus. Aspiram à “libertação” em vida de todos os entraves colocados pelo lamento passional da alma (nafs) e das limitações e temores engendrados pelo mundo”. AZEVEDO (1996).