Gurdjieff

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terça-feira, março 18, 2014

A Sabedoria das eras

 C.B.

“Primeiro de ouro, a raça dos homens mortais

criaram os imortais, que mantêm olímpias moradas

Eram do tempo de Cronos, quando no céu este reinava;
como deuses viviam, tendo despreocupado coração,
apartados, longe de penas e misérias.[i].


Há questões metafísicas que afligem sucessivas gerações de homens por séculos, impondo-lhes o desafio de buscar respostas para o dilema sempiterno representado pelo deslocamento entre sua dolorosa existência, de um lado; e as expectativas que lhes parecem inatas, de outro; concernentes à possibilidade de romperem as rígidas cadeias do sofrimento impostas pela vida neste planeta. Nas circunstâncias sob as quais vivem, a experiência da dor é a única que se lhes afigura enquanto algo palpável; não há outra realidade senão o pungente sentimento de vacuidade e impotência do seu pequeno “Eu” em relação ao “mundo”.  Mas, nem sempre, o homem se viu tão atarantado, enlouquecido, ao ponto de bipartir sua linha vital em dois segmentos conducentes à aniquilação total: o céu delusório do “nirvana” artificial ou o mergulho imprudente no vicio, afundando-se na própria natureza inferior.

A Sabedoria das Eras nos apontava um sentido geral de unidade entre o Homem Primordial e o Princípio Uno, Eterno, Imutável e Ilimitado que as diversas religiões conhecem por Deus, assumindo a vigência de uma ordem cósmica; refletida na Terra em aspectos perceptíveis aos sentidos humanos. O tempo era então uma criança, seus minutos eram contados como eternidade; era tempo cósmico, não linear. O estatuto humano era assegurado por colégios de sábios e iniciados cujos princípios insuflavam as instituições políticas, relações conjugais e sociais, credos estabelecidos; enfim, todo o espectro de ordenamentos envolvidos na interação entre cada membro particular de nossa linhagem e seus semelhantes.

Nas culturas de todos os povos, reminiscências dessa “Era de Ouro” são abundantes, assim como de sua dissolução progressiva, Naquela oitava superior da humanidade, o funcionamento rítmico e harmonioso das leis cósmicas em escala universal, tinha lugar, por correspondência, nas dimensões macroscópicas e microscópicas, convidando gentilmente o homem a integrar-se ao Todo e; mediante a observação silenciosa das maravilhas da criação que lhe descortinava, abria-lhe as portas da intuição, fazendo com que seu rosto mirasse os cimos. O Homem Primordial retinha no tesouro da memória a lembrança dos dias de sua juventude, quando anelava, em vão, adentrar o Éden, protegido pela terrível espada flamejante.

Nos primórdios da civilização, o homem nascia, labutava e morria sob a contemplação de um horizonte normativo que brilhava diante de seus olhos como algo tão assombroso e espetacular quanto o nascer do sol e o crepúsculo, o farfalhar das ondas, os flagelos marítimos ou o movimento periódico dos grandes luminares; o Sol e a Lua no céu visível. Seguro, pleno, confiante em que o futuro seria mais que o passado e, o presente, um instante no qual deveria envidar esforços para cumprir seu dever, o indivíduo cumpria suas obrigações (Dharma), executando suas ações conforme prescrevia a Lei.

“Este ritmo “Deus-homem”, uma ascensão repentina, seguida de uma decadência gradual – o resultado do que está acima do tempo com o que está sujeito ao tempo – pode ser descrito, para usar as estações do ano, como uma súbita primavera que avança para o verão, seguido de um gradual outono”[i].

Fortalecido, abrigado em um corpo coletivo organicamente equilibrado, o homem não se sentia só ou isolado na comunidade, apequenado, como hoje se vê, tal qual um verme parasitário perdido no universo. Sua passagem pela terra não era concebida como estéril diversão e, embora cônscio da finitude da vida e caráter imanente da morte, acalentava a esperança da sobrevivência vindoura, ao lado de seus deuses tutelares e entes próximos, transitoriamente ceifados com o rigor e a beleza que são os tronos temporais do poder divino.

Os homens viviam pacíficos, interna e externamente, até que, em dado ponto no tempo, ocorreu aguda inflexão no conjunto dos padrões que sustentavam sua existência. Gradativamente, valores se relativizaram, panteões adquiriram traços humanos, ritos se ossificaram, a cultura e os elementos tradicionais, repetidamente, viram-se seriamente abalados: a tradição fora pulverizada, a ordem, subvertida. No decurso de outros tantos ciclos e subciclos involutivos, a recordação da Idade de Ouro transfigurou-se em imagem opaca, disforme e distante. Ingressava-se na longa noite da humanidade: a Idade de Ferro.

Prolongado, o período a que nos referimos não pode ser desagregado, satisfatoriamente, em seus componentes principais, tendo de ser visto; porém, como a erupção tempestuosa de agressivos instintos no homem, acompanhados pela eclosão das catástrofes da fome e da guerra intestina entre as nações. Institutos políticos e sociais, antes robustos, são adulterados; a cultura é solapada e triunfam universalmente a vulgaridade e o desprezo pelas prodigiosas obras de arte que reverberam, ainda que fracamente, os ecos das glórias pregressas. O sentido da ordem, esmigalhado pela efervescência das paixões mais brutais, origina ilusões nos homens sobre sua autoimportância, infundindo-lhes insensato senso de autonomia e o desatino de julgarem-se “donos” de todos os direitos e isentos de deveres.

Confiante em suas forças inatas, o homem, à mercê do jogo da vida, crê ser o tirano de si próprio, uma divindade; mas, ao contrário, faz-se duende, diminuto e risível. Semelhante fenômeno veio a assumir tonalidades ainda mais sombrias, na medida em que as pútridas nuvens da dissolução atingiram a etapa atual do curso da humanidade, pairando como um monturo infecto sobre enorme, compacta e tresloucada massa informe, amontoada nos currais chamados de “grandes centros urbanos”, “capitais” e “metrópoles”.

Dois versículos de Gênesis quatro sintetizam todo o drama humano, encenado por atores ébrios na câmara tenebrosa das modernas sociedades:
" 1. Conheceu Adão a Eva, sua mulher; ela concebeu e, tendo dado a luz a Caim, disse: Alcancei do Senhor um varão. 2. Tornou a dar a luz a um filho - a seu irmão Abel. Abel foi pastor de ovelhas, e Caim foi lavrador da terra".

Com efeito, nos derradeiros quatro séculos, substancial e impetuosa transformação das estruturas econômicas do Ocidente (e, logo após, do globo como um todo), provocou alterações correspondentes às suas novas necessidades nas instituições e na sociedade, engendrando outros arcabouços legais e outro Estatuto Humano; exótico, posto que não mais fundado nos tronos do rigor e da beleza, adornos do poder divino nos planos sutis, mas no poder temporal.

 “11 Agora maldito és tu desde a terra, que abriu a sua boca para da tua mão receber o sangue de teu irmão.
12 Quando lavrares a terra, não te dará mais a sua força; fugitivo e vagabundo serás na terra.
13 Então disse Caim ao Senhor: É maior a minha punição do que a que eu possa suportar.
14 Eis que hoje me lanças da face da terra; também da tua presença ficarei escondido; serei fugitivo e vagabundo na terra; e qualquer que me encontrar matar-me-á.
15 O Senhor, porém, lhe disse: Portanto quem matar a Caim, sete vezes sobre ele cairá a vingança. E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que não o ferisse quem quer que o encontrasse”.

Com o aumento prodigioso da acumulação de recursos, a desorganização do campo, a expulsão dos camponeses em direção aos núcleos urbanos e o advento de uma produção mecanizada e concentrada no espaço, a maldição do sedentário lavrador Caim assumiu contornos grotescos, próximos ao paroxismo, no que nos cabe admitir, como Cioran[ii], enraízam-se em desespero terminal.

“Dentre as múltiplas formas do grotesco, a que me parece mais estranha e complicada é aquela que tem raízes no desespero. As outras visam a um paroxismo de natureza periférica. O grotesco, porém, e isso é importante, não pode ser concebido sem paroxismo. E que outro paroxismo é mais profundo e mais orgânico do que o do desespero? O grotesco surge apenas no paroxismo dos estados negativos, quando grandes tormentos brotam a partir de um déficit de vida; trata-se de uma exaltação em negatividade”.

Amontoados como peças, objetos descartáveis, os homens são sobressaltados a contragosto por distúrbios somáticos e anímicos. Dentre os últimos sobressaem-se a depressão e a melancolia em suas diversas modalidades, associada, a primeira, à profunda constatação da falta de sentido na vida; a segunda, a uma espécie de contemplação estética desinteressada e abúlica da miséria humana, entremeada com o gozo fortuito e o consumo de lenitivos para a dor; drogas físicas ou “espirituais”.

“Ao lado das doenças somáticas, que conhecemos há séculos, e das doenças psíquicas, identificadas mais recentemente, devem existir outras, de ordem superior, às quais chamaremos de doenças do espírito. Nenhuma neurose poderia explicar o desespero do Eclesiastes, o sentimento de nosso exílio na Terra ou de nossa alienação, o tédio metafísico, a consciência do vazio e do absurdo, a hipertrofia do eu ou a revolta sem objetivo; nenhuma psicose poderia explicar o “furor” econômico ou político, a arte abstrata, o “demonismo técnico, nem talvez aquele formalismo extremo que hoje em dia, em todos os domínios da cultura, consagra o primado da exatidão sobre a verdade”[iii].

Uma vez lançado no mundo, desacorrentado do que equivocadamente julgava uma ordem tirânica - imposição dos reinos seculares e do cosmos - o homem, repentinamente, atinou que era privado do sentido da existência. Enganara-se, quiçá irremediavelmente. Como os liames entre sua alma e o infinito são indissociáveis, a impossibilidade prática de negar o destino que lhe é reservado se impôs. O que fez então?  Procurou narcóticos e remédios inadequados, oferecidos por médicos de reputação duvidosa, saltimbancos que pudessem distraí-lo, ainda que momentaneamente, ou preceptores falastrões que lhe assegurassem felicidade certa e longa vida.

E o que ganhou o homem ao agir assim? Nada mais que símiles desbotados do paraíso perdido, encantamentos fugazes produzidos pelo aroma de buquês de flores que, repentinamente, metamorfoseadas em lépidas najas, saltam com presas afiadas sobre a pobre e infeliz vítima, para deboche do ilusionista que a ludibriara.





[i] LINGS, Martin. Sabedoria tradicional e superstições modernas. São Paulo, Ed. Polar, 1998.

[ii] CIORAN, Emil. Nos cumes do desespero. São Paulo: Ed. Hedra, 2012. p.30.

[iii] NOICA, Constantin. As seis doenças do espírito contemporâneo. Rio de Janeiro: Ed. BestBolso, 2011, p. 19.

quarta-feira, março 12, 2014

O implante dentário e um lampejo de si mesmo


Submeter o paciente a um implante de dentes equivale a descer da condição do "Homem-Massa" de Ortega y Gasset ao "Homem-Máquina" de Gurdjieff, regredi-lo conceitualmente a um ser mecânico, para o qual tudo acontece, tudo se se manifesta exteriormente. 

O dentista manuseia instrumentos lúgubres, invisíveis, ruidosos; não podemos divisá-los com acuidade; mas o paladar; azedado com saliva, sangue e pus; o tato não completamente amortecido; e, sobretudo a audição, incólume; - aliados à percepção naquele ambiente hostil dos "sentidos comuns" do movimento, repouso, figura e grandeza. 

A seringa amiga não refrea inteiramente a constatação da dor. Ouvimos o doutor dizer à assistente, "Pega a broca!"; de pronto, instala-se o pânico. Arrancam-se as carnes das gengivas com força tamanha que o maxilar afrouxa; não controlamos os lábios; na mente rodopiam fantasias, formam-se imagens desconexas que informam o corpo anestesiado da agressão iminente. 

De fato, o pedacinho de osso que restou do primeiro molar é perfurado; mas, isto não é suficiente: é necessário desbastá-lo como a "pedra bruta" de um Aprendiz Maçom. O rijo sobrevivente em sua cadeira é posto ao lado do Trono do Vigilante, o dentista, o aprendiz ignorante, perfila seus instrumentos; não o maço e o cinzel; mas o broca e agulha que lhe cabem em sua etapa iniciática, coisa ainda mais apavorante para o objeto do obreiro odontológico que as estórias macabras de convescotes satânicos. 

Terminado o serviço, o cirurgião, sorri, com a dentição saudável exposta ante a miséria alheia e; ainda, declara em tom elogioso, sem galhofa, sincero também na sua rotina: "Nunca vi osso mais forte que o seu".



Explicação

Muito frequentemente, em momentos singulares - costumeiramente naquelas ocasiões em que o homem tem estimulado em mais alto grau o senso instintivo - pode-se produzir uma rara unidade dos sentidos que nos dá notícia de nós mesmos. Ainda que fragmentária, ela, a nova informação, condensa uma verdade sobre o nosso "todo" de forma sintética. Estuda a ti mesmo, observa-te e conhece-te; são estes os passos no cotidiano, não circunstanciais pois exigem disciplina e constância.

quinta-feira, março 06, 2014

Constantin Noica e as seis doenças do espírito contemporâneo




Vejo ainda um dado límpido que um grande homem não pode ser imitado. No entanto, o humanismo sonha com isto: oferecer protótipos que sejam, de um modo ou de outro, imitados. Mas é suprema a absurdidade da pedagogia. Pois nem ao menos numa vida de santo não há nada ‘exemplar’, não há nada a imitar. Se não se realiza por conta própria, qualquer vida é um insucesso, uma dilação. (1)

 “E se foi possível ver no homem o “ser doente do universo”, foi provavelmente por causa dessas seis doenças, não por seus males físicos nem por suas neuroses. Naturalmente, elas ainda não tinham sido denominadas, e talvez não tivessem sido claramente relacionadas com as “crises” espirituais do homem; parece-nos, todavia, que é precisamente delas que sempre se falou, pois, como quer que seja, só elas – sendo constitutivas do homem – nos podem autorizar a dizer que ele é um “ser doente”. (2)

O filósofo romeno CONSTANTIN NOICA (Vitănești -Teleorman 12/25 de julho de 1909-Sibiu, 4 de dezembro de 1987) é ainda pouco lido no Brasil, mas talvez, no século XX, nenhum outro pensador além dele pôde compreender em todas as suas implicações a vasta dimensão do drama humano, ao vasculhar em sua obra de maturidade “As seis doenças do espírito contemporâneo” as “diferentes relações que têm entre si os traços definidores de todo ser, de toda realidade existente: a individualidade, a generalidade e as determinações que situam a individualidade na generalidade”, conforme pontifica o professor Olavo de Carvalho, responsável pela introdução, edição e notas da publicação em língua portuguesa. (3)

Utilizando um quadro clínico como alegoria dos dilemas que acometem o homem, Noica formulou uma tipologia de sintomas que identificam suas doenças de espírito, superiores às somáticas e às psíquicas, pois:
Nenhuma neurose poderia explicar o desespero do Eclesiastes, o sentimento de nosso exílio na Terra ou de nossa alienação, o tédio metafísico, a consciência do vazio e do absurdo, a hipertrofia do eu ou a revolta sem objetivo; nenhuma psicose poderia explicar o “furor” econômico ou político, a arte abstrata, o “demonismo” técnico, nem talvez aquele formalismo extremo que hoje em dia, em todos os domínios da cultura, consagra o primado da exatidão sobre a verdade”. (4).

As doenças de espírito são doenças ônticas, aquelas que verdadeiramente constituem o homem, pois o ser também pode adoecer, sendo “afetado nas coisas viventes e inanimadas, estas permanecem secretamente bloqueadas por uma dessas doenças, que no entanto se dissimulam por trás da aparente estabilidade das coisas; mas, se é atingido no homem, este último, graças á sua instabilidade superior, revela a sua doença à plena luz do dia”. A primeira dessas enfermidades é a carência do individual, a todedite.

“Esse homem irá, como todos, respirar, mas o ar que irá respirar será condicionado e “geral”, não este determinado ar de sua terra, cujo odor ele tão bem não sabia reconhecer; ele se alimentará, por certo, mas, ali também, de substâncias gerais; ele se esforçará, como sempre, na vida do conhecimento, mas se interessará antes pela essência do que pelas realidades particulares; e se alguma planta ainda o puder deslumbrar, ela terá certamente brotado numa estufa. Em parte alguma do cosmos ele reencontrará aquela realidade individual, o sabor particular “desta coisa aqui”, o tode-ti do filósofo grego, cuja ausência nos faz sofrer bem mais do que a imperfeição. Tanto ele como as coisas que o rodeiam já não terão realidade particular. Por isso ele deverá, de tempos em tempos, voltar à terra para curar sua todetite”. (5)

A segunda das enfermidades a acossar o homem é a carência do geral, a necessidade de encontrar o individual autêntico dá origem a seu oposto, “a doença em que o sofrimento não vem da carência do individual, mas ao contrário, da do geral. Se apelarmos de novo para  a língua grega, o “geral”, Kathoulou, lhe dar seu nome: catolite”. Esta merece tratamento à parte, uma vez que engolfa indistintamente toda a humanidade, ou:

Em certo sentido, a catolite é a doença espiritual típica do ser humano, tão atormentado pela obsessão de se elevar a uma forma de universalidade. Quando, por um gesto elementar de lucidez, o homem desperta da hipnose dos sentidos comuns que geralmente o manobram – no interesse, aliás, da espécie e da sociedade –, ele busca por todos os meios curar de sua amargura de ser uma simples existência individual sem nenhuma significação de ordem geral. Ele busca então, mediante a maior parte de seus engajamentos deliberados, apoderar-se dos sentidos gerais. Com muita frequência, cai na armadilha dos sentidos prontos (como as “ideologias” de seu tempo), que não são senão falsos remédios, incapazes de curar seu mal em profundidade. Por isso, quando o homem – até o mais medíocre – prolonga seu gesto de lucidez por tempo suficientemente longo para perceber a futilidade do geral a que se devotou, sua catolite retoma toda a sua virulência”.(6)

Outra doença se relaciona às determinações do ser e explica o horror do homem que não pode agir em conformidade com seu próprio pensamento e suas convicções, a horetite ou carência de determinações. Neste caso,

“... além de um geral e de um individual, o ser, para se realizar, também tem necessidade de determinações adequadas, isto é, de manifestações que possam harmonizar-se tanto com sua realidade individual como com o sentido geral a que tente. E já que a doença é provocada pela impossibilidade de obter tais determinações, poderia-se denominá-la horetite, tendo em mente o grego horos, que signfica “termo”,”determinação”. Essa doença exprimiria então os tormentos e a exasperação do homem por não poder agir de acordo com seu próprio pensamento e suas convicções”.(7)

Às doenças que acarretam desregramentos de ordem geral no espírito, seguem-se aquelas que se juntam ao repertório patalógico de Noica e se apresentam como fruto não da carência, mas da recusa de um aspecto particular do ser, de um dos seus três termos constitutivos, possuindo aspecto iminentemente privativo: a acatolia, atodecia e ahorecia. Mais estranhas que as primeiras, elas são ilustradas pelo filósofo romeno na cultura como “espelho ampliador de nossa vida espiritual”. O quadro abaixo, adaptado de NOICA (2011), associa cada uma dessas doenças de “carência” e “recusa” a exemplos na esfera da criação literária.


AS SEIS DOENÇAS DO ESPÍRITO CONTEMPORÂNEO – EXEMPLOS NA ESFERA DA CULTURA
Causa imediata
RECUSA
CARÊNCIA
Necessidade não atendida
Doença - Exemplo
Doença - Exemplo
Generalidade
Individualidade
Determinações
1.       Acatolia  D. Juan
2.       Atodecia – Tolstoi
3.       Ahorecia - Godot
4.       Catolite  Birotteau
5.       Todetite  Os demônios
6.       Horetite  D. Quixote
Fonte: NOICA (2011)

Cabe aqui como resumo das peculiaridades das doenças do espírito repetir, enfim, as palavras do próprio Noica:

Diferentemente das doenças comuns, que provocadas por circunstâncias e agentes os mais variados, são inumeráveis, as doenças de ordem superior, do espírito, não são mais que seis, pois refletem as seis precariedade possíveis do ser.
A primeira nasce da precariedade da ordem geral numa realidade individual provida de suas determinações. È no homem, a catolite.
A segunda, deve-se á precariedade de uma realidade individual que deveria assumir as determinações inscritas numa ordem geral: É a todedite.
A terceira situação ontológica é provocada pela carência de determinações apropriadas de uma realidade geral que tem já sua forma individual: È a horetite.
A quarta apresenta-se como o oposto simétrico da precedente: aqui o individual que, após ter alcançado um sentido geral, é incapaz (ou o recusa, no caso do homem) de se dar determinações específicas. É a ahorecia.
A quinta delas porovém da precariedade – e no homem, da incompreensão – de toda realidade individual em harmonia com um geral que já se teria especificado graças a determinações várias. É a atodecia.
Por fim, a sexta precariedade do ser projeta (de modo deliberado, no homem) numa realidade individual, determinações que não se apoiam em nenhum sentido geral: É a acatolia”.


BIBLIOGRAFIA

NOICA, Constantin. Diário filosófico. São Paulo: É Realizações, 2011. A
_______________. As seis doenças do espírito contemporâneo. Rio de Janeiro: Ed. BestBolso, 2011. B

NOTAS

1.  NOICA, Constantin (A), p. 80
2. NOICA, Constantin (B), p. 44.
3. Prefácio de Olavo de Carvalho (NOICA, Constantin. As seis doenças do espírito contemporâneo. Rio de Janeiro: Ed. BestBolso, 2011.
4. NOICA, Constantin (B), p. 19.
5. Ibidem, p. 22.
6. Ibidem, p. 23.
7. Ibidem, p. 24.

8. Ibidem, p. 44.