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terça-feira, janeiro 10, 2012

John Holman. O Retorno da Filosofia Perene - A Doutrina Secreta para os Dias de Hoje


A safra literária recente que atende aos anseios do buscador sincero não é generosa no Brasil. Acostumado a receber material de má qualidade e segunda mão, o brasileiro é presa de um mercado editorial canhestro que lucra com publicações de auto-ajuda ou esoterismo à la “Nova Era”. Há honrosas exceções, como a Madras Editora, a Editora Teosófica e a Pensamento, que teimam em oferecer ao leitor material de melhor qualidade. É o caso do livro “O Retorno da Filosofia Perene - A doutrina secreta para os dias de Hoje”, publicado pela Pensamento em 2011.
 Se no Brasil há décadas circula volumoso manancial de informação teosófica (na linha de Blavatsky e seus seguidores), o estudante de língua portuguesa dificilmente encontrará em vernáculo algo pertencente ao campo da “Filosofia Perene”, um ramo de estudos das tradições religiosas que remonta aos trabalhos pioneiros do francês Réné Guénon. Entre o que podemos conceber como um texto introdutório ao assunto (ou um pequeno, ou quase, manual para o semi-leigo), a obra de John Holman é única, o que é auspicioso para quem deseja superar a espiritualidade superficial e os clichês impostos pela mídia e uma indústria editorial que atendem aos interesses escusos daqueles que delimitam o que deve ou não ser lido.

Prova inconteste de que há uma conspiração de silêncio em torno do Tradicionalismo e da Filosofia Perene é a completa ausência nas livrarias, nomeadamente nesta terra de ninguém, o Brasil, de autores como Réné Guénon, Frithjof Schuon, Julius Evola como tantos outros. Miséria semelhante atinge gigantes da envergadura de Helena Petrovna Blavatsky – cujas obras escolhidas não existem em português; Mario Roso de Luna (o genial polígrafo espanhol) isto, sem falar, em escritos que coloquem em cheque mentiras históricas e falsos enredos políticos cuidadosamente inoculadas por grupos de pressão nas mentes brasileiras.

Voltando a Holman, seu objetivo é apresentar um panorama da visão de mundo esotérica ocidental, com foco em seus “aspectos psico-espirituais e cosmológicos”, com altas doses de sincretismo. O primeiro ponto que incomoda o observador perspicaz é o fato do título não corresponder ao peso dado a diversas questões, sua priorização e ordem de exposição. Discute-se, “en passant”, escolas e autores que detêm parentesco direto, ou não, com a “filosofia perene”, ao invés de, simplesmente concentrar-se em seus principais expoentes, o que, por si, pagaria preço de venda do livro e agradaria a este pouco exigente leitor. Se nos esquecermos deste não tão desprezível senão, podemos saltar todas as páginas dedicadas à teosofia (à moda de HPB e da Sociedade Teosófica), neoplatonismo, cabala e passos da iniciação, entre outras, atendo-nos, por conseguinte à porção escrita que obedece estritamente ao escopo sugerido na capa.

Isto significa procedermos a um recorte compreendo o intervalo entre as páginas 16 e 54, que contêm rudimentos do ensinamento “perene” úteis ao neófito, na falta do original. Tais prolegômenos compreendem a adequada colocação histórica do problema, marcos “metodológicos” para  a análise “acadêmica” dos problemas colocados pelo esoterismo ocidental e noções de tradição, tradicionalismo e seus elementos principais. Além disso, com certo proveito para o estudante, a revisão de elementos-chave da contribuição de René Guénon nos soa proveitosa, ainda que a tradução, aqui e ali, se mostre sinuosa.

Guénon e sua mesa de trabalho no Cairo
O que é “philosophia perennis”? A cunhagem do termo tem sido geralmente atribuída a Gottfried Wilhelm Leibnitz em uma tentativa de analisar a “verdade e a falsidade de todas as filosofias antigas e modernas” o que lhe levaria a extrair “o ouro da escória, o diamante de sua mina, a luz das sombras”. Ele próprio sacou o termo da obra “De Perenni Philosophia (1540)” do teólogo do Século XVI Agostinho Steuco, bibliotecário do Vaticano. Para este, a “filosofia perene” tinha a ver como uma “verdade absoluta originalmente revelada”, uma “prisca teologia”, a “iluminação que emana da “Mens Divina”. Outros, fazem-na remontar a Marco Túlio Cícero, que já se referia a uma religião-Sabedoria original e universal, “Theosofia” (tal como empregada por Amônio Saccas e continuadores modernos como Helena Petrovna Blavatstky e, em tempos recentíssimos, Aldous Huxley).

Traçada a origem do termo, há que conferir-lhe correto tratamento metodológico. Afinal, nas últimas décadas do século XX o esoterismo penetrou, nem tão “a forceps” nas universidades, ainda que como “(...) uma linha de pensamento histórica, algo que poderíamos chamar de tradição ‘subterrânea’ do pensamento ocidental (...) . Para tratar este “pensamento subterrâneo”, a “(...) abordagem geralmente promovida (quando não prescrita) é a ‘agnóstico-empírica’. Como “abordagem agnóstico-empírica” se quer dizer que, o “(...) o que é observável para todos nós (com algum esforço e com a mente humana comum) são as concepções dos esoteristas, não de que essas concepções são ou podem ser (da Realidade Divina). Essas concepções, à medida que as formos abordando, serão apresentadas de maneira ‘neutra’ (isto é, sem que haja manifestação de uma opinião acerca de sua veracidade), e este estudioso do esoterismo ocidental não é – que fique claro desde já – operacionalmente um esoterista, mas sim (...) um ‘esoterólogo’.”.

Trocando em miúdos, um esotórologo é alguém que admite de forma “neutra” as concepções dos praticantes de esoterismo, abstraindo-se seus fatores divinos, cuja percepção atina ao esoterista, a (...) a pessoa cuja experiência decorre de trilhar o Caminho com tudo que isso implica, inclusive o desejo de renascimento espiritual, em primeiro lugar”. O enfoque “agnóstico-empírico”, sem bem entendi, pode ter suas lacunas preenchida  por um esforço “etnometodológico” ou “gnóstico”. Assim, “Se desejarmos realmente entender o esoterismo, a única abordagem é a de um ‘insider’, ou seja, de alguém que conhece alguma coisa por dentro”, o que não descarta uma abordagem empírico-histórica usada por esoteristas-historiadores como G.R.S. Mead e Manly P. Hall, mas o mais importante a reter é que a “(...) a prática teúrgica antes da atividade erudita. Podemos ter tanto esooteristas quando esoterólogos, porém o que tem importância crucial é que não precisamos ser esoterólogos para ser esoteristas”.

O autor ao menos é realista acerca das limitações do seu próprio procedimento como esoterólogo, ao reconhecer que “(...) o estudo de textos como atividade de apoio apenas, com isso, implicando que, por mais que possa revelar acerca de um domínio empírico que chamamos de 'pensamento esotérico ocidental', a pesquisa acadêmica comum sempre continuará, por sua natureza limitada (sendo não procedimental), girando em órbita do verdadeiro material”.

Após seus comentários às novas metodologias empregadas para a compreensão do esoterismo, são repassadas antigas tradições que formaram sua matriz no Ocidente (o gnosticismo, o neoplatonismo e o hermetismo), até as leituras de René Guénon no Século XX, o fundador, por assim dizer, da escola “tradicionalista” da “Sophia Perennis”, espécie de conhecimento superior ao qual se poderia acessar por meio da “intuição intelectual”. Para Guénon, esta “Sabedoria Primordial” expressava-se em símbolos comuns às principais religiões do mundo, tendo como instrumento “par excellence” a literatura sapiente de cada um deles. Para descobrir seu significado, é preciso recorrer à gnose, o que permite que se fale um cristianismo esotérico, hinduísmo esotérico ou simples praticantes do esoterismo que sustentam sua própria religião.
Guénon e Schuon. Cairo

Não se trata apenas de uma “tradição esotérica ocidental” segundo Guénon, mas de uma “Tradição” que se origina no passado e tem continuidade no futuro, no Sempreterno. Desse modo, “(...) nossa cultura ocidental moderna (pós-medieval) não é Tradicional e, poderíamos inclusive reconhecer, é até antitradicional, diferindo de praticamente todas as demais culturas anteriores do planeta. Portanto, a modernidade assistiu a 'degeneração' (...)) da civilização humana numa era de Trevas, onde a luz da Tradição se extinguiu ou, na melhor das hipóteses, só brilha debilmente”.
Mas o que difere o “tradicional” do “antitradicional”? Resumidamente, princípios como:

a) Quantidade e Qualidade, o homem olhando “horizontalmente para fora”, a “(...) dimensão quantitativa, empírica, que se opõe à dimensão metafísica (quantidade como raciocínio discursivo e a qualidade se correlacionaria ao conhecimento);

b) o Absoluto, o Uno, Involução e Evolução: o Absoluto por trás do Uno, que se relaciona a um princípio por trás da natureza logóica, Uno este ao qual “do terceiro aspecto como o princípio da Matéria, o segundo aspecto como princípio da Consciência e o primeiro aspecto como o princípio do Espírito”;

c) Sempreternidade e Tempo: “Aquele que está por trás de nosso sistema cósmico pensa, todas as coisas da nossa realidade sensível se manifestam”. Neste ponto, é fundamental ter em conta que “eternidade significa duração infinita, referindo-se ao tempo “exotérico”. Sempreternidade, outro conceito decisivo, refere-se ao 'sempre agora' (Coomaraswamy a chamava de 'agora sempre') ou o momento esotérico dentro de cada momento do tempo exotérico. Portanto, o Eu supremo do homem, o espírito, reside em Deus e, portanto, o tempo esotérico. Em termos mais amplos pode-se então distinguir três tipos de tempo: 1) o tempo que o personagem mede; 2) o sempreterno e o 3) o “tempo da consciência”. Assim “(...) a evolução da consciência se processa em seu próprio ritmo. “A Sempreternidade é ainda mais fundamental. O homem identifica-se primeiro com o círculo (e com o tempo do personagem); em seguida com a linha (tempo da Consciência) e, por fim, com o ponto (Sempreternidade)”.

d) Hierarquia e Gnoseologia: A realidade se divide em níveis, a existência evolui à medida que os níveis se tornam mais altos. Em cada nível “há seres superiores e inferiores a nós, o que nos colocar em nosso verdadeiro lugar no universal”.
Deuses como graus de percepção.  O próprio conceito da filosofia envolve mais que o simples estudo.

d) Visão Tradicionalista da História e do Doutrinarismo: Nossa “consciência de dimensão quantitativa” pode ter crescido ao longo do tempo, mas até a Idade Média, a dimensão qualitativa continuou a ser 'reconhecida' no Ocidente (por meio de uma Grande “Cadeia de Existência”).

Em sua “Unidade Transcendente das Religiões”, Frithjof Schuon também se refere a alguns trações inerentes à filosofia perene que são: : 1) Os estágios sucessivos da realidade; 2) A realidade não é objetiva (ela é 'experiência de Deus'), 3) A experiência de Deus  - o Intelecto divino – está 'por trás' da experiência consciente de todas as criaturas, o que nos permite dizer que ela está em todas as criaturas; 4) a dualidade do exoterista verifica-se entre ele como criatura e Deus como Existência – portanto, entre dois aspectos dele mesmo. O esoterista reconhece a realidade dessa dualidade. 6)  O absoluto é a razão da existência, não há o que perguntar; 7)  a Existência é inescapável e, no que diz respeito a isso, podemos dizer que não temos livre arbítrio. Porém isso aplica somente a nossa condição humana, não à nossa divindade.

 
Para os tradicionalistas, na visão de René Guénon, a “(...) a mentalidade moderna é simplesmente o produto de uma vasta sugestão coletiva, a saber, a de que este mundo do homem e da matéria é a única realidade, e para Evola [um autor tradicionalista com idéias próprias mas que também se referencia em Guénon], esse mudança foi uma 'decisão metafísica' que tomamos (portanto na qual não podemos voltar atrás) com nosso livre-arbítrio”. Entretanto, sublinha que “(...) 'tradicionalismo' denota apenas uma tendência, que não implica nenhum conhecimento efetivo das verdades tradicionais”.

Não falta ao expoente maior do “Sophia Perennis” uma periodização das Eras (Krta, Treta, Dvapara e Kali Yugas)  – assim como o fizeram todas as Tradições do passado, da Índia, à Grécia e Roma. Esta classificação pode ser explicada nos termos do esquema de Giambattista Vico, que propõe uma Idade dos Deuses, dos Heróis e uma dos Homens, em que, na primeira, os deuses falam diretamente aos mortais por meio de seus sacerdotes (iniciadores) e, na última a humanidade passa a ser governada por homens comuns, com uma linguagem comum.

Aprofundando sua análise, no livro “O Reino da Quantidade e os Sinais do Tempo”, que veio à lume em 1953,  Guénon aponta o rumo antitradicionalista tomada pela humanidade a partir do Renascimento, desembocado no materialismo e correntes assemelhadas que se 'insinuaram-se na mentalidade geral e, finalmente, conseguiram estabilizar essa atitude sem recorrer a nenhuma formulação teórica'. Ou seja, o home mecanizou a tudo e a si mesmo, 'caindo pouco a pouco em unidades numéricas, parodiando a unidade mas perdido na uniformidade e na indistinção da 'massa'.

Porém, à humanidade ainda cabe algum alento. Pode ser que estejamos no fundo do poço, mas o caráter cíclico das eras - ensina o Mestre da Tradição - assegura-nos que à frente teremos uma nova Idade de Ouro, na qual a Filosofia Perene será abraçada por todos.

Um comentário:

Tulla Louise Sore disse...

Excelente resenha. Gostaria de conhecer o autor. Temos poucas oportunidades de trocar ideias com pessoas realmente engajadas numa busca interior e no estudo da Filosofia Perene...
Tulla Louise Sore