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quinta-feira, maio 23, 2013

Felicidade e Qualidade de Vida

Felicidade e Qualidade de Vida



Sentidos da Felicidade

Pouquíssimas palavras são tão mal compreendidas quanto “felicidade”. Trocam-se os fins pelos meios e julga-se feliz aquele que satisfaz seus desejos mais imediatos, usufruindo do que imagina serem os “prazeres da vida”. Mas o alcance da felicidade vai muito além da compra de uma nova TV de plasma ou de um carro novo. Quantos de nós conhecemos em nosso círculo de parentes e amigos, pessoas bem sucedidas, financeiramente estáveis e inseridas em estruturas familiares ou em redes sociais que correspondem ao nosso estereótipo de felicidade? Mas serão elas realmente felizes? Ninguém sabe dizê-lo, pois a felicidade, antes de tudo é uma disposição interior de espírito. Em segundo lugar, há indícios de que este estado não está relacionado a fatores como posse, poder, atividade desenfreada (como a obsessão por exercícios físicos, aventuras, viagens sem fim e êxito nos negócios) ou qualquer fator exterior. Na sociedade contemporânea, o forte incentivo à competição e ao ganho monetário é outro empecilho de monta à conquista da verdadeira felicidade, e fonte primordial da angústia que afeta o homem.
Mesmo estes prosaicos filósofos da natureza, os economistas, têm se envolvido com o espinhoso desafio de contemplar a felicidade em seus modelos. Em 1972, um país da Ásia chamado Butão foi pioneiro ao calcular um índice de “Felicidade Interna Bruta” (FIB) que - ao contrário do “Produto Interno Bruto” - incorpora algumas dimensões do ser humano ignoradas solenemente nas medidas “físicas” do bem estar (1). Seu objetivo era criar um indicador adaptado à cultura do país, capaz de evidenciar que ele não era tão pobre quanto se pensava (pois o cômputo apenas da produção de bens e serviços não dava conta de toda a sua riqueza espiritual e cultural).
De fato, muito da percepção limitada que temos da felicidade decorre da ignorância de suas origens etimológicas. Nessa palavra o morfema “feliz” provém de “Fe”, uma raiz latina derivada do indo-europeu “Dhe” que, por sua vez quer dizer “mamar” ou “sugar”. Entre os antigos gregos, o vocábulo “eudaimonia” ou “que tem um poder divino (daimon) bem disposto (eu)” era o que mais se aproximava do que atualmente assinalamos como felicidade, sendo tida como um favor divino e relacionada à prosperidade. Como não pretendemos crer que nossos ancestrais nos séculos IV e V A.C. raciocinavam à maneira reducionista e grosseira dos contemporâneos, optamos por assumir que a primeira interpretação (da boa disposição do poder divino no homem) melhor traduz a acepção clássica de felicidade.
Ademais, no seio da Grécia havia vozes discordantes que relativizavam a segunda opinião, como Eurípedes que vaticinou em sua célebre “Medeia”: “Nenhum homem é feliz (eudaimon) (2). Se a prosperidade (olbos) vem até ele, ele pode ter mais sorte (eutyches) que outros homens, mas feliz, ele não é”. Na Roma do Império, por sua vez, “Felicîtas” (felicidade) era a personificação de uma antiga deusa, usualmente impressa em moedas e que celebrava a boa sorte e o sucesso. Não sem generosa dose de boa vontade, entendemos que aquela deidade simbolizava o fato de que adquirir um bom resultado (ou ter êxito) pressupõe um ponto de origem (o estado atual) e destino (o
estado futuro). Mas para triunfar é preciso percorrer um caminho até a meta. É preciso esforço para ser feliz. Mesmo sob pena de nos atermos quesito tão “materialista” (o êxito ou o sucesso), esta idéia do esforço nos parece uma das mais profícuas chaves dos mistérios da felicidad (3).

Com efeito, filósofos romanos como Sêneca sentenciavam que “(...) todos querem viver felizes, mas não têm a capacidade de ver perfeitamente o que torna a vida feliz. Realmente não é fácil atingir a felicidade, porque, se alguém desviado do reto caminho se precipita para alcançá-la, fica sempre mais afastado da realidade” (4). A felicidade, portanto, comportava mais que retenção de dinheiro ou o dar livre curso às paixões, a simples “alegria” ou o contentamento transitório e não permanente. Era uma inclinação do homem, pois “(...) uma alma reta nunca se transforma nem é odiosa a si mesma, em nada se afasta do melhor modo de viver; o prazer, porém, extingue-se justamente quanto mais deleita, o seu campo não é muito amplo e, por isso, logo sacia, causa tédio e definha depois do primeiro impulso”.

Mais profunda e visceral ainda é a interpretação da felicidade entre as milenares escolas filosóficas e tradições espirituais hindus. Com todas as dificuldades em verter o idioma sânscrito para as línguas ocidentais, o que mais se aproxima da felicidade real e que pode ser experimentada pelo Ser humano é Sat-Chit-Ananda, a tríade existência, sabedoria e bem-aventurança. Ananda ou beatitude (a condição de fato feliz da existência) vem a ser a suprema autorrealização do homem e sua fusão no oceano do divino.

Na prática, por assim dizer, tal experiência tem a ver com aquelas raras circunstâncias em que o homem encontra o divino - não como algo externo a si mesmo - ; mas como uma realidade interna, entregando-se sem limites à contemplação do Todo, Uno ou, simplesmente, Deus. Este momento especial não é privilégio de um punhado de homens e mulheres abnegados. Pode ser experimentado por todos e muitas vezes não nos damos conta daqueles breves instantes em que a intuição nos impele a percepções mais refinadas do ambiente e de nossa relação conosco mesmos e o Universo (5).

Para certos grupos islâmicos como os sufis ou os praticantes Zen budistas um dos atalhos para a “iluminação” (um dos sinônimos de autorrealização) reside nos efeitos instantâneos de alguns acontecimentos fortuitos sobre o sujeito que os experiência. Uma abelha pousando sobre uma pequena flor a desabrochar, gotas de orvalho na relva ou o coaxar de um sapo são suficientes para provocar-lhe uma clara antevisão da beleza do mundo. È o mesmo que dizer - como o fazem certos místicos - que “conhecemos a Deus por seus sinais”(6) e a sintonia com a natureza é um caminho simples e comumente menosprezado para a felicidade suprema.

Outrossim, existem outros campos em que a sensibilidade pode ser apurada , abrindo-se mais uma porta para a autorrealização. Manifestações artísticas como a dança, a poesia, a música e outras também contribuem para assegurar-nos uma vida plena de significado, como bem lembrou uma amiga que, gentilmente, revisou meu texto original. E ela está coberta de razão. O homem que ao longo de seu extenso período de vida (pois entre milhares de espécies a nossa é uma das mais longevas) priva-se de arte é um indivíduo truncado, um pobre coitado cuja alma pode ter se atrofiado definitiva e irremediavelmente.

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*Agradeço a colaboração dos amigos Sylvio de Queiroz Mattoso, Fernanda Duayer Picardi e Nilson Galvão que, gentilmente, revisaram e apresentaram sugestões ao texto. Não suponham pela leitura do ensaio que eu mesmo tenha alcançado o estado de espírito sobre o qual me debruço aqui. Entre falar da felicidade e ser feliz há um longo e penoso caminho.

1 Como o PIB, que é simplesmente o somatório dos preços de todos os bens e serviços vendidos a preços de mercado em determinado período do tempo.
2 LAURIOLA, Rosana. De eudaimonia à felicidade. Visão geral do conceito de felicidade na antiga cultura grega, com alguns vislumbres dos tempos modernos. Revista Espaço Acadêmica no 59, abril de 2006.
3 O homem se fosse sábio ergueria templos ao esforço. Mas aonde quer que ele seja valorizado no mundo, jamais o é como uma das mais importantes forças cósmicas nos planos material ou espiritual, porém amesquinhado a tal ponto que se viu banido de toda reflexão filosófica de fôlego.
4 SENECA, Lucius Anneus. Da vida feliz. São Paulo, Martins Fontes, 2001.
5 No sufismo ou mística islâmica este modo de ver as coisas é pronunciado. “O coração do sufismo "estánum hadith" (sentença) de Mohamed: ‘Adora a Deus como se o visses, pois mesmo que tu não O vejas, Ele na verdade sempre te vê’. Os fukará procuram assim agir sempre como se estivessem na presença de Deus. Aspiram à “libertação” em vida de todos os entraves colocados pelo lamento passional da alma (nafs) e das limitações e temores engendrados pelo mundo”. AZEVEDO (1996).

Um comentário:

Anônimo disse...



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