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terça-feira, março 13, 2012

René Guénon - A Crise do Mundo Moderno (Trechos)

Não aprecio "in totum" o que o filósofo e ocultista francês René Guénon escreveu. Discordo de suas opiniões depreciativas sobre a Teosofia (ou "teosofismo"), de seu exacerbado gosto pela generalização e mesmo o sobrepeso que atribui a valores espirituais menores e à ostentação de um "pedigree" tradicional que antes expressa a soberba do fariseu que a pugna sincera e honesta do buscador. Admiro, contudo, sua defesa intransigente de princípios e de uma Filosofia Perene ofuscada há séculos pela imposição de um humanismo que enreda o homem em seus braços de Titã engolidor de almas.
Mas tenho que convir que estes trechos extraídos dos capítulos iniciais de "A Crise do Mundo Moderno" exprimem com invejável rigor a natureza de eventos que se desenrolam deste o século VI A.C com breves interrupções ao longo da história. Vale a pena lê-los.




“Portanto, se se diz que o Mundo Moderno sofre uma crise, o que se entende mais habitualmente por isso é que ele chegou a um ponto crítico, ou, noutros termos, que uma transformação mais ou menos profunda está iminente, que uma mudança de orientação deverá inevitavelmente produzir-se a breve prazo, a bem ou a mal, de modo mais ou menos brusco, com ou sem catástrofe”. Pg. 27/28.
“Mas na própria palavra ‘crise’ outras significações estão contidas, que a tornam mais apta a exprimir o que queremos dizer: ‘efetivamente, a sua etimologia, que muitas vezes se perde de vista na linguagem corrente, mas à qual convém reportamo-nos, como se deve sempre fazer quando se quer restituir a um termo a plenitude do seu sentido próprio e do seu valor original, a sua etimologia, dizíamos, fá-la parcialmente sinônimo de ‘julgamento’ e de ‘discriminação’.
“Diremos, então, para remeter as coisas às suas justas proporções que parece que nos aproximamos realmente do fim de um Mundo, ou seja, do fim de uma época ou de um ciclo histórico que pode, além disso, estar em correspondência com um ciclo cósmico, segundo o que ensinam a este respeito as doutrinas tradicionais”. Pg. 34.

Capítulo Primeiro – A Idade Sombria

“Mas, perguntarão, sem dúvida, porque é que o desenvolvimento cíclico se deve assim cumprir num sentido descendente, indo do superior para o inferior, o que, como será facilmente notado, é a própria negação da idéia de ‘progresso’, tal como os modernos a entendem? É que o desenvolvimento de toda a manifestação implica necessariamente um afastamento cada vez maior do princípio do qual ela procede; partindo do ponto mais alto, ela tende forçosamente para baixo, e, como os corpos pesados, tende para esse sentido com uma velocidade sem cessar crescente, até que encontra finalmente um ponto de paragem. Esta queda poderia ser caracterizada como uma materialização progressiva, porque a expressão do princípio é pura espiritualidade”. Pg. 36

“Há um fato bastante estranho, que parece nunca ter sido notado como merece: é que o período propriamente ‘histórico’, no sentido que acabamos de indicar, remonta exatamente ao século VI antes da era cristã, como se houvesse aí, no tempo, uma barreira que não é possível transpor com a ajuda dos meios de investigação de que dispõem os investigadores vulgares”.pg. 39
“No século VI antes da era cristã produziram-se, qualquer que tenha sido a sua causa, mudanças consideráveis em quase todos os povos; estas mudanças apresentaram, aliás, características diferentes conforme os países”. Pg. 40

IMPORTANTE
“Mas, por outro lado, viu-se aparecer, em breve, alguma coisa de que não se tinha ainda tido nenhum exemplo e que deveria seguidamente exercer uma influência nefasta sobre todo o mundo ocidental: referimo-nos a esse modo especial de pensamento que tomou e conservou o nome de ‘filosofia’; e este ponto é bastante importante para que nos detenhamos nele alguns instantes”.pg. 42
“A palavra ‘filosofia’, em si mesma, pode seguramente ser tomada  num sentido muito legítimo, que foi sem dúvida o sem sentido primitivo, sobretudo se é verdade que, como se pretende, foi Pitágoras o primeiro a utilizá-la. Etimologicamente, não significa senão ‘amor de sabedoria’; designa, então, primeiramente, uma disposição prévia requerida para alcançar a sabedoria, e pode designar também, por uma natural extensão a procura que, nascendo dessa disposição, deve conduzir ao conhecimento. É então apenas um estádio preliminar e preparatório, um caminhar para a sabedoria, um grau correspondente a um estado inferior a esta; o desvio que se produziu depois consistiu em tomar este grau transitório pelo próprio fim, em pretender substituir a sabedoria pela ‘filosofia’, o que implica o esquecimento ou o desconhecimento da verdadeira natureza desta última. Foi assim que nasceu o que nós podemos chamar a Filosofia ‘profana’, ou seja, uma pretensa sabedoria puramente humana, portanto de ordem simplesmente racional, tomando o lugar da verdadeira sabedoria tradicional, supraracional e ‘não humana’. No entanto, subsistiu ainda alguma coisa através de toda a Antiguidade; o que o prova é primeiramente a persistência dos ‘mistérios’, cujo caráter essencialmente ‘iniciático’ não pode ser contestado, e é também o fato de que o ensino dos próprios filósofos tinha simultaneamente, na maior parte dos casos, um lado ‘exotérico’ e um lado ‘esotérico’, este último permitindo a ligação a um ponto de vista superior, que se manifesta, aliás, de maneira muito nítida, embora talvez incompleta, em certos aspectos, alguns séculos mais tarde entre os Alexandrinos. Para que a filosofia ‘profana’ fosse definitivamente constituída como tal, era preciso que só o ‘exoterismo’ permanecesse e que se fosse até a negação pura e e simples de todo o ‘esoterismo’; era precisamente ao que deveria conduzir, entre os modernos, o movimento começado pelos gregos; as tendências que se tinham afirmado entre estes deveriam, então, ser levadas até às suas conseqüências mais extremas, e a importância excessiva que eles tinham acordado ao pensamento racional ia ainda acentuar-se para chegar ao ‘racionalismo’, atitude especialmente moderna, que consiste, não apenas simplesmente em ignorar, mas em negar expressamente tudo o que é de ordem supraracional; mas não antecipemos demasiado, porque devemos voltar a falar destas conseqüências e a ver o desenvolvimento delas numa ou outra parte de nossa exposição”. Pgs 43/44.

“convém procurar na Antiguidade ‘clássica’ algumas das origens do Mundo Moderno; este não está, portanto, inteiramente errado quando se reclama da civilização Greco-latina e pretende ser seu continuador”. Pg. 344
“No entanto, devemo sublinhar que se trata apenas de uma continuação longínqua e um pouco infiel, porque, apesar de tudo, havia nessa Antiguidade muitas coisas de ordem intelectual e espirituala, das quais não se poderia encontrar equivalente entre os modernos; são, em todo o caso, dois graus bastante diferentes do obscurecimento progressivo do verdadeiro conhecimento”. Pg. 44
“(...) a civilização Greco-latina devia terminar e a correção devia vir de outro lado e operar-se sob outra forma. Foi o Cristianismo quem efetuou essa transformação; e, notemo-lo de passagem, a comparação que se pode estabelecer, sob certa relação, entre esse tempo e o nosso é talvez um dos elementos determinantes do ‘messianismo’ desordenado que aparece atualmente à luz do dia. Depois do conturbado período das invasões bárbaras, necessário para concluir a destruição do antigo estado de coisas, uma ordem normal foi restaurada pra durar alguns séculos; foi a Idade Média, tão desconhecida dos modernos, que são incapazes de compreender a sua intelectualidade e para quem essa época aparece certamente muito mais estranha e distante do que a Antiguidade ‘clássica’. Pg. 45
“A verdadeira Idade Média, para nós, estende-se do reinado de Carlos Magno até o começo do século XIV; nesta última data começa uma nova decadência que, através de diversas etapas, ir-se-á acentuando até nós. É aí que se situa o verdadeiro ponto de partida da crise moderna; é o começo da desagregação da ‘Cristandade’; à qual se identificava essencialmente a civilização ocidental da Idade Média; é, ao mesmo tempo que o fim do regime feudal, estreitamente solidário com essa mesma ‘Cristandade’, a origem da constituição das ‘nacionalidades’. Será então necessário fazer remontar a época moderna a cerca de dois séculos mais cedo do que o habitual; a Renascença e a Reforma são sobretudo resultantes e só possíveis pela decadência prévia; mas, bem longe de serem uma reparação, elas marcavam uma queda muito mais profunda, visto que consumaram a ruptura definitiva com o espírito tradicional, uma delas no domínio das ciências e das artes, a outra no próprio domínio religioso, que era, no entanto, aquele onde tal ruptura teria podido parecer mais dificilmente concebível”. Pg. 46
“O que se designa por Renascimento foi, na realidade, como já temos dito noutras ocasiões, a morte de muitas coisas; sob pretexto de voltar à civilização Greco-romana, só se tomou o que esta tinha de mais exterior, porque apenas isso se tinha podido exprimir claramente nos textos escritos; e essa incompleta restituição apenas poderia ter um caráter muito artificial, visto que se tratava de forma que desde há séculos tinham cessado de viver a sua vida autentica. Quanto às ciências tradicionais da Idade Média, após algumas derradeiras manifestações nessa época, desapareceram totalmente, tal como as das longínquas civilizações que foram outrora aniquiladas por algum cataclismo; e dessa vez nada viria substituí-las. A partir daí, só houve a Filosofia e a Ciência ‘profanas’, ou seja, a negação da verdadeira intelectualidade, a limitação do conhecimento à ordem mais inferior, o estudo empírico e analítico de fatos que não se encontram ligados a qualquer principio, a dispersão numa multiciplidade indefinida de detalhes insignificantes, a acumulação de hipóteses sem fundamento, que se destroem incessantemente umas às outras, e de visões fragmentárias que a nada podem conduzir, salvo a aplicações práticas que constituem a única superioridade afetiva da civilização moderna; superioridade, aliás, pouco invejável, e que, desenvolvendo-se até abafar qualquer outra preocupação, deu a esta civilização o caráter puramente material que faz dela uma verdadeira monstruosidade”.

3 comentários:

Anônimo disse...

Excelente blog. Passo a ler e seguir.
Adriano Miglia

Anônimo disse...

Obrigado. Volte sempre!

Unknown disse...

René Guénon é um gigante da intelectualidade que nos permite entender princípios da espiritualidade que, gradativamente, o dito "progresso" vem ofuscando cada vez mais. Professor de matemática, escreveu na revista REGNABIT do Vaticano, depois se converteu ao islamismo para buscar, e entender, aspectos que lhe faltavam. Falava e lia diversas línguas o que lhe permitiu estudar autores pouco acessíveis à maioria das pessoas.