Gurdjieff

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Quem é Gurdjieff?

quarta-feira, abril 11, 2012

Pedro Nava e a Maçonaria em Juiz de Fora

Pedro Nava foi um médico e escritor natural de Juiz de Fora, pioneira cidade industrial que ganhou o merecido epíteto de "Manchester Mineira". No livro "Baú de Ossos" descreve com elegância e bom humor a percepção de algumas pessoas no início do Século XIX sobre a Maçonaria e os maçons na cidade. Transcrevo para apreciação dos interessados dois divertidos parágrafos traçados pelo imortal juizforano.


TRECHO


Foto da antiga Loja Maçônica Fidelidade Mineira, fundada em 1848.
A oficina atual ocupa um andar em prédio mais moderno.
Ouvi pela primeira vez a palavra greve – dita por uma das minhas tias, tão baixo e com um ar de tal escândalo, que pensei que fosse uma indecência igual às que tinha aprendido no Machado Sobrinho, e corei até as orelhas. Mas pior, muito pior que as fábricas onde os descontentes queriam ganhar mais do que precisavam; pior que o Cinema Farol e a Politeama onde se tentavam timidamente os ensaios precursores da bolina (o Politeama viu o primeiro mártir dessa arte nacional desmaiar de dor na sua platéia; marido furibundo lhe empolgara com um alicate dedo da mão audaciosa que se insinuara nas anáguas da mulher, para apertá-lo tão duramente e em tão demorado silêncio que ficaram esmagadas as carnes e quebrados os ossos do moço advogado), pior que os bordéis, pior que os colégios leigos e que o desaforo do colégio metodista para meninas, pior que a Cervejaria Weiss animada por Brant Horta, Amanajós de Araújo e Celso D’Ávila com guitarras, descantes, declamação de versalhada e as chegadas dos tílburis carregados de “mulheres-damas” – era a maçonaria. Sua loja ficava em plena rua Direita, entre as do Imperador e da Imperatriz, como desafio permanente ao clero diocesano e aos cristãos-novos e velhos do alto dos Passos.

Para cólera-que-espuma da sogra (“Cachorrão”! Coitada da minha filha...”), repugnância das cunhadas (“Pobre de nossa irmã, casada com bode preto!), consternação de minha Mãe (“Nossa Senhora, que pecado!) e escândalo da cidade (“Pobre moça! Também casar com nortista...) e animado por nosso primo Mário Alves da Cunha Horta, pedreiro-livre emérito, meu Pai ousara tripingar-se! Primeiro, cavaleiro da rosa-cruz. Depois da águia branca e negra. E freqüentava noitantemente a casa maldita, sempre escura, de janelas e portas herméticas. Lembro-me bem quando lhe passava em frente, com minha Mãe, ela descrevia uma curva prudente, largava o passeio e tomava a sarjeta para distanciar-se dos óculos gradeados do porão onde, diziam, havia um negro caprino cevado com carne podre de anjinhos e cujo bafo enxofrado era fatal.

Era de arrepiar ouvir o Mário descrever as cerimônias iniciáticas daquele oriente... Nada, absolutamente nada se comparava aos horrores por que ele tinha passado. Pura brincadeira o que o Tolstoi descrevia na Guerra e Paz. Pilhéria, água com açúcar, o que Alexandre Dumas traçava no José Bálsamo. Ele mesmo, Mário, filho do Coronel Chico Horta e D. Regina Virgilina, ali, em Juiz de Fora, depois de provações tremendas, de contatos cadavéricos, de ordálias de gelo, fogo, escuridão e vácuo, exausto, sentira-se finalmente arrebatado pelos cabelos, pelas orelhas, e esfocinhado à beira de um vórtice profundo. Os olhos, vendados, pés e mãos lhe fugindo na ribanceira movediça. E o vento. Em rodamoinhos, fazendo ruflar mortalhas e pendões. Ele não sabia bem se estava no morro do imperador, nos altos da Mantiqueira, no pico do Cauê ou serrotes do Itatiaia. “Pula, irmão” – ordenava-lhe voz cavernosa, “Pula, irmão” – retomavam em coro outras vozes sepulcrais que o eco repetia de quebrada em quebrada. Sem hesitação ele se atirara abismo abaixo, escuridão abaixo, morte abaixo... Mas não caiu nem dois palmos. Sentiu logo um perfume inebriante, alcatifa sob os pés, o amparo de braços amigos, luz, aconchego, vozes conhecidas: “Seja bem-vindo, irmão”.

sexta-feira, abril 06, 2012

Ocultismo e Alquimia - Nem tanto ao Céu, nem tanto à Terra

Heinrich Khunrath, Amphitheatrum Sapientiae Aeternae, 1602.

A Alquimia é tradicionalmente a ciência e a arte de transmutar metais inferiores e menos nobres em metais superiores ou produzir uma certa espécie de medicamento ou Elixir da Vida Eterna capaz de conferir estabilidade a quem o ingere desde o momento em que é ministrado. Nos relatos que sobreviveram à impiedosa censura dos contemporâneos e que nos dão conta do real quadro dos indivíduos que beberam o elixir, consta que perderam os dentes e cabelos, sua tez repentinamente mudou de cor, a pele foi deitada por terra como o que sói acontecer com as serpentes e ressurgiram joviais como a mitológica fênix rediviva.  Mas na Alquimia, as dimensões filosófico-espirituais e a operativa só através de grosseira e intolerável manobra - incompatível com o ritmo natural da terra e suas estações  - poderiam ser dissociadas. Nenhum soprador meia tigela acalentaria idéia tão vergonhosa, tão oposta ao espírito da Arte e de uma época em que Fé e Razão caminhavam juntas e a Filosofia não havia sido amputada pelo arbítrio de um imprudente do corpo da Ciência. Ao menos, esta é a opinião deste pobre articulista, um reles soprador que se entretém em noites insípidas com a árida interpretação de textos que nem com a ajuda dos grimórios mais poderosos e a invocação de legiões de gênios instrutores do além poderia corretamente entender.

Mas nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Na leitura de certos escritores dos séculos XVIII e XIX que tanto maravilham, mesmerizam alguns estudiosos do oculto, formando a argamassa do edifício ritualístico de venerandas e róseas ordens que congregam milhares de adeptos nos dias de hoje - sobressai um manhoso "tour de force" para contornar os obstáculos ao perscrutador que queira aventurar-se nos meandros sinuosos do "Jardim Hermético": a redução de um vasto escopo de operações alquímicas, elementos, artefatos, utensílios, e conceitos próprios à arte a um pequeno oratório  (não o panteão da Arte) doméstico de fugazes princípios espirituais mínimos que mais tarde viriam a ser consagrados pela "Nova Era" (a "espiritualidade" vaga, "light", inoculada em velocidade acelerada desde os anos 60 no Ocidente).

Os escritos dos Adeptos da Arte se perdem no caudal da História, desde tempos longínquos. São atribuídos a civilizações ainda mais antigas que engendraram aquela que se ergueu no Egito dos Faraós, passando pelos reinos dos caldeus, assírios, medo-persas, gregos, romanos, os judeus expelidos de sua pátria e a multidão de operadores europeus que desde o domínio islâmico na Península Ibérica fomentaram uma verdadeira "febre alquímica" no continente. Mas estes mesmos textos, cristalinos ou obscuros, simples ou complexos, filosóficos ou voltados para aspectos práticos, quintessenciais ou descendo às minúcias a serem seguidas na lavagem de um cadinho ou retorta, variam na ênfase emprestada a determinados pontos, na sequência das operações, na descrição das "chaves da obra", no uso dos fogos, na escolha dos recipientes e meios, nas fases e fins da obra.

Isto quer dizer que não há nada que aponte em qualquer autor uma tendência inata a tratar a matéria prima como algo sutil e espiritual (um "Azoth" que corresponda à luz astral, por exemplo), os estágios da obra como uma gradual escalada extática (a absorção no UNO) e os elementos constituintes dos metais, o enxofre e o mercúrio (ou o sal) como algo não-material. O contrário também não se pode dizer, embora seja mais difícil crer que uma infindável e bem elaborada nomenclatura combinada  com descrições precisas de intervenções físicas através do manejo de ingredientes igualmente físicos e sobejamente conhecidos à época seja apenas uma forma velada de apresentar descobertas e discutir pequenos resultados entre um grupo de "cientistas" (ao modo popperiano moderno, um "colégico de acadêmicos" que comentam seus "papers" redigidos com método socialmente aceito e ratificado) que se conhecem entre sim e guardam o significado de um  cardápio de sacrossantos termos como um segredo que não confessariam jamais, sob pena de perjuro. A contribuição dos "sopradores" e "Artistas" como um Yazid, um Jabir Ibn Hayyan, o sublime Raimundo Lullius, um Arnold de Villanova e alguns alquimistas do século XVIII às modernas técnicas da ourivesaria, química, ao trabalho com os metais e à própria indústria, com a criação de ácidos, solventes e sais é um fato, não obstante a ignorância instalada intencionalmente no meio universitário e o deboche dos contemporâneos que, aparentemente, se precipitam com sede de Tântalo no abismo da sua própria estupidez.

O aperfeiçoamento de materiais como o vidro e mesmo o requinte dos atuais lápis de cor deve-se à aplicação de alguns "filósofos" (principalmente alemães) que consumiam suas vistas diante da forja, o Athanor, por meses, anos ou décadas, no mais das vezes sem resultados palpáveis. Do seu trabalho não se originava a grande "obra", os metais imperfeitos convertidos no mais puro deles, o ouro com seu mercúrio translúcido e enxofre fixo, mas subprodutos - encarados como a borra imprestável - que, até os dias de hoje fazem a riqueza de países como Alemanha, a Suiça e parte da Europa Central, em especial a Bohêmia. Sem falar na Espagíria, que teve em Teophrastus Bombastus Von Hohenheim, vulgo Paracelsus, seu expoente de proa. Mesmo na atualidade, fração não desprezível da indústria farmacêutica alemã utiliza com proveito receitas de manipulação de plantas que são a base de remédios cuja composição data da longínqua e "ignara" Idade Média, periodo a que os próceres do iluminismo e sua guilhotina arremeteram a caluniosa pecha de "idade das trevas", como se os horrores covardemente perpetrados pelas facções dos revolucionários franceses e seus coevos bochelviques e outros não fossem apenas um tímido reflexo das atitudes viris e algo belas de um Átila ou Gêngis Khan.

Mas esta é apenas uma suposição. Há provas em demasia de que o que se fabricava era ouro, ou o "aurum potabile" a medicina universal. No Oriente é lugar comum o ensinamento de que a busca persistente da verdade, acompanhada por passos da "Yoga" (união) preliminar (a pureza dos atos mentais, físicos, verbais) em fases intermediárias é caracterizada pelo desenvolvimento de poderes psíquicos ("sidhis", em sânscrito) que equivalem à notável capacidade de alterar as propriedades da matérias (ou três qualidades da matéria, ou "gunas",  em sânscrito, "satwa, rajas e tamas", os princípios ativo, negativo e neutro que regem a organização do mundo). Uma vez dotado deste poder, para o alquimista/iniciado a modelagem plástica da matéria é mero entretenimento. Não deixa de ser oportuno mencionar que tais artifícios não são desejáveis por si sós. Cegam o aspirante à vida espiritual e dificultam posteriores progressos ao embriagá-lo com a recém conquistada habilidade de dominar a matéria, afastando-o do real objetivo da senda, a conquista do seu EU superior.

Outra possibilidade, menos nobre porém plausível - sustentada por alguns dos seus biógrafos atuais - é aquela de que os velhos operários da Antiga Ciência, com métodos hoje ignorados, houvessem descoberto técnicas que para os padrões modernos só pudessem ser aplicadas com a fabricação de aceleradores de partículas sofisticados, caros e mantidos em enormes galpões nas Universidades ou centros tecnológicos de grandes corporações. Esta é a hipótese que costumo chamar de "modernosa", frágil e inferior, posto que o ouro alquímico não se compara ao produto da abrasiva agressão ao metal perpetrada por um ansioso desconhecedor da Natureza.

Um terceiro caminho argumentativo que permeia diversos autores assinala que a alquimia, uma arte em seu primórdios associada a tintureiros de Alexandria e da Síria (que cheiravam mal com suas roupas manchadas pela gosma dos mexilhões dos quais era extraída a coloração das roupas que pintavam) ganhou, com o passar do tempo, foro privilegiado em matéria de buscar fazer com que o "vil metal" obtivesse a cor exterior do ouro, o que alguns malandros lograram fazer ao longo da história da humanidade com a gradual sofisticação da técnica de "folhear" a matéria impura ou aplicar-lhe corretivos que momentanemante pudessem iludir um incauto comprador. Particularmente tendo a discordar desta torpe motivação, embora não a exclua de um rol de possibilidades que na singular conjugação de fatores que poderíamos considerar candidatos - ao menos razoáveis - pelo despontar desta estranha ciência como área autônoma do conhecimento há, ao menos, uns 2000 anos.

Ocorrendo ou não fraudes, supondo "poderes" adquiridos para o deleite de um aspirante despreparado ou o desenvolvimento de técnicas apropriadas, os testemunhos da transmutação de metais menos pobres utilizando o pó de projeção (ou não) em prata ou ouro se repetem na literatura, embaraçando até mesmo os críticos mais veementes dos alquimistas, alcunhados de parasitas e supersticiosos remanescentes daquele sombrio intervalo que antecedeu o "Século das Luzes". Não se trata de um polêmico Cagliostro entre maçons egípcios exibindo sua maestria conquistada entre os Hospitalários em Malta, mas as evidências de um Nicolas Flamel, do Bom Trevisano, os resultados de um Sendivogius ou um Seton. Mas de que se trata, enfim, esta ciência tão vilipendiada por alguns, perseguida por outros, alçada ao altar excelso do trabalho sobre o metal imperfeito do Ser por outros?

A Alquimia é mais um ramo das Ciências Antigas cujas chaves o Iluminismo quase sepultou em caratér definitivo. Quase,  porque algumas insuflações de persistentes adeptos atuais a mantêm viva, inconsciente, prostrada no leito mas cheia de esperanças de recobrar a lucidez. Estes poucos abnegados fazem jus à máxima de Heinrich Kunrath, inscrita em um de seus mais famosos painéis e que bem expressa o labor do alquimista: ORA, LEGE, LEGE, RELEGE, LABORA ET INVENIES

terça-feira, março 13, 2012

René Guénon - A Crise do Mundo Moderno (Trechos)

Não aprecio "in totum" o que o filósofo e ocultista francês René Guénon escreveu. Discordo de suas opiniões depreciativas sobre a Teosofia (ou "teosofismo"), de seu exacerbado gosto pela generalização e mesmo o sobrepeso que atribui a valores espirituais menores e à ostentação de um "pedigree" tradicional que antes expressa a soberba do fariseu que a pugna sincera e honesta do buscador. Admiro, contudo, sua defesa intransigente de princípios e de uma Filosofia Perene ofuscada há séculos pela imposição de um humanismo que enreda o homem em seus braços de Titã engolidor de almas.
Mas tenho que convir que estes trechos extraídos dos capítulos iniciais de "A Crise do Mundo Moderno" exprimem com invejável rigor a natureza de eventos que se desenrolam deste o século VI A.C com breves interrupções ao longo da história. Vale a pena lê-los.




“Portanto, se se diz que o Mundo Moderno sofre uma crise, o que se entende mais habitualmente por isso é que ele chegou a um ponto crítico, ou, noutros termos, que uma transformação mais ou menos profunda está iminente, que uma mudança de orientação deverá inevitavelmente produzir-se a breve prazo, a bem ou a mal, de modo mais ou menos brusco, com ou sem catástrofe”. Pg. 27/28.
“Mas na própria palavra ‘crise’ outras significações estão contidas, que a tornam mais apta a exprimir o que queremos dizer: ‘efetivamente, a sua etimologia, que muitas vezes se perde de vista na linguagem corrente, mas à qual convém reportamo-nos, como se deve sempre fazer quando se quer restituir a um termo a plenitude do seu sentido próprio e do seu valor original, a sua etimologia, dizíamos, fá-la parcialmente sinônimo de ‘julgamento’ e de ‘discriminação’.
“Diremos, então, para remeter as coisas às suas justas proporções que parece que nos aproximamos realmente do fim de um Mundo, ou seja, do fim de uma época ou de um ciclo histórico que pode, além disso, estar em correspondência com um ciclo cósmico, segundo o que ensinam a este respeito as doutrinas tradicionais”. Pg. 34.

Capítulo Primeiro – A Idade Sombria

“Mas, perguntarão, sem dúvida, porque é que o desenvolvimento cíclico se deve assim cumprir num sentido descendente, indo do superior para o inferior, o que, como será facilmente notado, é a própria negação da idéia de ‘progresso’, tal como os modernos a entendem? É que o desenvolvimento de toda a manifestação implica necessariamente um afastamento cada vez maior do princípio do qual ela procede; partindo do ponto mais alto, ela tende forçosamente para baixo, e, como os corpos pesados, tende para esse sentido com uma velocidade sem cessar crescente, até que encontra finalmente um ponto de paragem. Esta queda poderia ser caracterizada como uma materialização progressiva, porque a expressão do princípio é pura espiritualidade”. Pg. 36

“Há um fato bastante estranho, que parece nunca ter sido notado como merece: é que o período propriamente ‘histórico’, no sentido que acabamos de indicar, remonta exatamente ao século VI antes da era cristã, como se houvesse aí, no tempo, uma barreira que não é possível transpor com a ajuda dos meios de investigação de que dispõem os investigadores vulgares”.pg. 39
“No século VI antes da era cristã produziram-se, qualquer que tenha sido a sua causa, mudanças consideráveis em quase todos os povos; estas mudanças apresentaram, aliás, características diferentes conforme os países”. Pg. 40

IMPORTANTE
“Mas, por outro lado, viu-se aparecer, em breve, alguma coisa de que não se tinha ainda tido nenhum exemplo e que deveria seguidamente exercer uma influência nefasta sobre todo o mundo ocidental: referimo-nos a esse modo especial de pensamento que tomou e conservou o nome de ‘filosofia’; e este ponto é bastante importante para que nos detenhamos nele alguns instantes”.pg. 42
“A palavra ‘filosofia’, em si mesma, pode seguramente ser tomada  num sentido muito legítimo, que foi sem dúvida o sem sentido primitivo, sobretudo se é verdade que, como se pretende, foi Pitágoras o primeiro a utilizá-la. Etimologicamente, não significa senão ‘amor de sabedoria’; designa, então, primeiramente, uma disposição prévia requerida para alcançar a sabedoria, e pode designar também, por uma natural extensão a procura que, nascendo dessa disposição, deve conduzir ao conhecimento. É então apenas um estádio preliminar e preparatório, um caminhar para a sabedoria, um grau correspondente a um estado inferior a esta; o desvio que se produziu depois consistiu em tomar este grau transitório pelo próprio fim, em pretender substituir a sabedoria pela ‘filosofia’, o que implica o esquecimento ou o desconhecimento da verdadeira natureza desta última. Foi assim que nasceu o que nós podemos chamar a Filosofia ‘profana’, ou seja, uma pretensa sabedoria puramente humana, portanto de ordem simplesmente racional, tomando o lugar da verdadeira sabedoria tradicional, supraracional e ‘não humana’. No entanto, subsistiu ainda alguma coisa através de toda a Antiguidade; o que o prova é primeiramente a persistência dos ‘mistérios’, cujo caráter essencialmente ‘iniciático’ não pode ser contestado, e é também o fato de que o ensino dos próprios filósofos tinha simultaneamente, na maior parte dos casos, um lado ‘exotérico’ e um lado ‘esotérico’, este último permitindo a ligação a um ponto de vista superior, que se manifesta, aliás, de maneira muito nítida, embora talvez incompleta, em certos aspectos, alguns séculos mais tarde entre os Alexandrinos. Para que a filosofia ‘profana’ fosse definitivamente constituída como tal, era preciso que só o ‘exoterismo’ permanecesse e que se fosse até a negação pura e e simples de todo o ‘esoterismo’; era precisamente ao que deveria conduzir, entre os modernos, o movimento começado pelos gregos; as tendências que se tinham afirmado entre estes deveriam, então, ser levadas até às suas conseqüências mais extremas, e a importância excessiva que eles tinham acordado ao pensamento racional ia ainda acentuar-se para chegar ao ‘racionalismo’, atitude especialmente moderna, que consiste, não apenas simplesmente em ignorar, mas em negar expressamente tudo o que é de ordem supraracional; mas não antecipemos demasiado, porque devemos voltar a falar destas conseqüências e a ver o desenvolvimento delas numa ou outra parte de nossa exposição”. Pgs 43/44.

“convém procurar na Antiguidade ‘clássica’ algumas das origens do Mundo Moderno; este não está, portanto, inteiramente errado quando se reclama da civilização Greco-latina e pretende ser seu continuador”. Pg. 344
“No entanto, devemo sublinhar que se trata apenas de uma continuação longínqua e um pouco infiel, porque, apesar de tudo, havia nessa Antiguidade muitas coisas de ordem intelectual e espirituala, das quais não se poderia encontrar equivalente entre os modernos; são, em todo o caso, dois graus bastante diferentes do obscurecimento progressivo do verdadeiro conhecimento”. Pg. 44
“(...) a civilização Greco-latina devia terminar e a correção devia vir de outro lado e operar-se sob outra forma. Foi o Cristianismo quem efetuou essa transformação; e, notemo-lo de passagem, a comparação que se pode estabelecer, sob certa relação, entre esse tempo e o nosso é talvez um dos elementos determinantes do ‘messianismo’ desordenado que aparece atualmente à luz do dia. Depois do conturbado período das invasões bárbaras, necessário para concluir a destruição do antigo estado de coisas, uma ordem normal foi restaurada pra durar alguns séculos; foi a Idade Média, tão desconhecida dos modernos, que são incapazes de compreender a sua intelectualidade e para quem essa época aparece certamente muito mais estranha e distante do que a Antiguidade ‘clássica’. Pg. 45
“A verdadeira Idade Média, para nós, estende-se do reinado de Carlos Magno até o começo do século XIV; nesta última data começa uma nova decadência que, através de diversas etapas, ir-se-á acentuando até nós. É aí que se situa o verdadeiro ponto de partida da crise moderna; é o começo da desagregação da ‘Cristandade’; à qual se identificava essencialmente a civilização ocidental da Idade Média; é, ao mesmo tempo que o fim do regime feudal, estreitamente solidário com essa mesma ‘Cristandade’, a origem da constituição das ‘nacionalidades’. Será então necessário fazer remontar a época moderna a cerca de dois séculos mais cedo do que o habitual; a Renascença e a Reforma são sobretudo resultantes e só possíveis pela decadência prévia; mas, bem longe de serem uma reparação, elas marcavam uma queda muito mais profunda, visto que consumaram a ruptura definitiva com o espírito tradicional, uma delas no domínio das ciências e das artes, a outra no próprio domínio religioso, que era, no entanto, aquele onde tal ruptura teria podido parecer mais dificilmente concebível”. Pg. 46
“O que se designa por Renascimento foi, na realidade, como já temos dito noutras ocasiões, a morte de muitas coisas; sob pretexto de voltar à civilização Greco-romana, só se tomou o que esta tinha de mais exterior, porque apenas isso se tinha podido exprimir claramente nos textos escritos; e essa incompleta restituição apenas poderia ter um caráter muito artificial, visto que se tratava de forma que desde há séculos tinham cessado de viver a sua vida autentica. Quanto às ciências tradicionais da Idade Média, após algumas derradeiras manifestações nessa época, desapareceram totalmente, tal como as das longínquas civilizações que foram outrora aniquiladas por algum cataclismo; e dessa vez nada viria substituí-las. A partir daí, só houve a Filosofia e a Ciência ‘profanas’, ou seja, a negação da verdadeira intelectualidade, a limitação do conhecimento à ordem mais inferior, o estudo empírico e analítico de fatos que não se encontram ligados a qualquer principio, a dispersão numa multiciplidade indefinida de detalhes insignificantes, a acumulação de hipóteses sem fundamento, que se destroem incessantemente umas às outras, e de visões fragmentárias que a nada podem conduzir, salvo a aplicações práticas que constituem a única superioridade afetiva da civilização moderna; superioridade, aliás, pouco invejável, e que, desenvolvendo-se até abafar qualquer outra preocupação, deu a esta civilização o caráter puramente material que faz dela uma verdadeira monstruosidade”.

terça-feira, janeiro 24, 2012

A Nova Classe nos Dias de Hoje (América Latina) – Ensinamentos de Milovan Djilas

Milovan Djias. Preso em 1956 após apoiar a Revolução anticomunista Húngara
Nos anos 50 um importante burocrata comunista da antiga Iuguslávia do Marechal Tito refugiou-se no Ocidente: Milovan Djilas. O Camarada Djilas não era um aparelhista qualquer do Partido, mas um homem que circulava nas mais altas esferas de poder em seu país e no mundo comunista. Com boa formação clássica e “marxista-leninista”, ao radicar-se no Ocidente escreveu um livro indispensável ao estudioso do fenômeno no “comunismo real” (não o comunismo ideal, o Èden, a Avalon idílica dos nossos matreiros e burros esquerdistas contemporâneos).

Editado pela Fred and Praeger, New York (minha sétima edição é de 1957), “The New Class – an analysis of he communist system” ao lado de “Eles” ( estarrecedora descrição em forma de entrevistas conduzidas por Tereza Toranska que transcreve a crueza com que ex-comunistas polonoses reviam seu pesado) a “Nova Classe” tem a honrosa distinção de pertencer a um seleto rol de obras pioneiras no campo dos “estudos do comunismo”, ponto de partida para o estabelecimento de uma futura academia americana de sovietologia e comunismo que no passado ostentou exponentes como  Zbigniew Kazimierz Brzezinski, um dos mentores políticos de Jimmy Carter.

Por questão de método é aconselhável deixar de lado as entranhas totalitárias do “marxismo” ou “marxismo-leninismo”, aspectos da história da URSS e embates teóricos (muitas vezes com resultados “práticos” como o fuzilamente de um interculator “inapropriado” de "direita" ou "esquerda" os dois antípodas que desafiavam o poder absoluto de Stálin). Focalizamo-nos, portanto, no ponto nevrálgico da original avaliação de Djilas: as diferenças entre a revolução na Rússia e eventos similares, as características específicas da “Nova Classe” (que a singularizam como algo substancialmente diferente de todas as demais), suas relações com os meios de produção (o que, em conformidade com o próprio jargão marxista, permite sua classificação como 'classe'), sua relação com o Partido, o papel do “líder de classe” em seu estado embrionário (Na URSS, Joseph Stálin) e os dispositivos de que lança mão (a "Classe") para perpetuar-se no poder enquanto classe dominante.

Como salienta Djilas, “Esta nova classe, a burocracia, ou mais acuradamente, a burocracia política, tem todas as características das anteriores assim como novas características que lhe são próprias. Sua origem tem peculiaridades especiais também, ainda que na essência fosse similar à de outras classes”. pg. 38

Sem correr o risco de aplicar a conceituação e metodologia de Djilas a outras conformações comunistas ou socialistas pró-comunistas da atualidade (não falamos de Cuba ou Coréia do Norte, mas de países de orientação socialista como Venezuela, Brasil, Bolívia, Argentina, Equador e outros) é digna de nota a voracidade com que os militantes dos partidos de esquerda, ao agarrarem com unhas e dentes nacos do aparato estatal, nele se grudam e mudam suas percepções de vida, gostos, opções estéticas, narcotizando-se com a “euforia na infelicidade” (para usar uma frase de bom tom do frankfurtiano Marcuse).

Esta horda de militantes “pé de chinelo”, com formação precária e níveis de politização grotescos adquiridos na "luta" (sindicatos, cooperativas, partidos, ONGS) ao se alojarem em seus cargos de confiança, contratos especiais por regime administrativo, contratos de trabalho formais assinados com empresas terceirizadas e outros “meios flexíveis” para vincularem-se à grande vaca estatal, passam a ganhar vistosos salários – bem acima da média – dos quais extraem os fundos para ingressarem no mundo maravilhoso do consumo e da “elegância de classe média”.

Em todos os países da América Latina dominados pelo programa da esquerda – notadamente no Brasil, Venezuela e Bolívia – a Nova Classe se estabeleceu, a partir de um processo lento de “guerra ideológica de trincheiras” na sociedade civil. Finalizada esta fase, a classe em sua fase embrionária, passou a dedicar-se à disputa intestina contra seus concorrentes internos, ingressando na etapa das purgas (as exclusões, "autocríticas", expulsões e anulações de biografias, expedientes corriqueiros na ditadura stalinista), prelúdio de sua consolidação enquanto classe social consciente de sua missão como "vanguarda revolucionária" na "construção do socialismo". Este será o assunto de nossos próximos artigos.




quarta-feira, janeiro 11, 2012

O Traço Principal de Caráter segundo as Escolas Esotéricas - Thomas De Hartmann


Thomas De Hartmann


Um interessante trecho do livro do músico e discípulo de Gurdjieff, Thomas De Hartmann, "Nossa Vida com Gurdjieff":



“Nas escolas esotéricas, certos homens de alto nível de compreensão estudam, em sua totalidade, a natureza do homem.
Seus alunos querem desenvolver o próprio Ser. Falam sincera e abertamente de sua busca interior, de sua meta, como alcançá-la e como aproximar-se dela, e dos traços de caráter que lhe obstruem o caminho. Para ir ao encontro de uma confissão assim, deve-se tomar uma decisão importante, aceitar ver seus defeitos reais e falar deles. Gurdjieff ensinava ser absolutamente essencial conhecer o traço principal de seu caráter, aquele em torno do qual (como de um eixo) giram todas as nossas estúpidas e cômicas fraquezas. Desde os primeiros dias, Gurdjieff nos falava desse traço principal. Vê-lo e estar plenamente consciente dele é às vezes muito doloroso, algumas vezes impossível de suportar. Nas escolas esotéricas, como já disse, só se releva a um aluno sua fraqueza principal com muitas precauções, para evitar que se crie um estado de desespero capaz de pôr fim a sua vida. Um vínculo espiritual com um mestre pode evitar essa tragédia.
As Sagradas Escrituras falam do momento da descoberta do defeito principal quando dizem que, ao ser esbofeteado na face direita, você deve oferecer a face esquerda. O sofrimento que esse descoberta provoca assemelha-se à ofensa de uma bofetada. Um homem deve achar em si mesmo força para evitar esse sofrimento, mas ter a coragem de oferecer a outra face, quer dizer, ouvir e aceitar ainda mais a verdade sobre si mesmo”

terça-feira, janeiro 10, 2012

John Holman. O Retorno da Filosofia Perene - A Doutrina Secreta para os Dias de Hoje


A safra literária recente que atende aos anseios do buscador sincero não é generosa no Brasil. Acostumado a receber material de má qualidade e segunda mão, o brasileiro é presa de um mercado editorial canhestro que lucra com publicações de auto-ajuda ou esoterismo à la “Nova Era”. Há honrosas exceções, como a Madras Editora, a Editora Teosófica e a Pensamento, que teimam em oferecer ao leitor material de melhor qualidade. É o caso do livro “O Retorno da Filosofia Perene - A doutrina secreta para os dias de Hoje”, publicado pela Pensamento em 2011.
 Se no Brasil há décadas circula volumoso manancial de informação teosófica (na linha de Blavatsky e seus seguidores), o estudante de língua portuguesa dificilmente encontrará em vernáculo algo pertencente ao campo da “Filosofia Perene”, um ramo de estudos das tradições religiosas que remonta aos trabalhos pioneiros do francês Réné Guénon. Entre o que podemos conceber como um texto introdutório ao assunto (ou um pequeno, ou quase, manual para o semi-leigo), a obra de John Holman é única, o que é auspicioso para quem deseja superar a espiritualidade superficial e os clichês impostos pela mídia e uma indústria editorial que atendem aos interesses escusos daqueles que delimitam o que deve ou não ser lido.

Prova inconteste de que há uma conspiração de silêncio em torno do Tradicionalismo e da Filosofia Perene é a completa ausência nas livrarias, nomeadamente nesta terra de ninguém, o Brasil, de autores como Réné Guénon, Frithjof Schuon, Julius Evola como tantos outros. Miséria semelhante atinge gigantes da envergadura de Helena Petrovna Blavatsky – cujas obras escolhidas não existem em português; Mario Roso de Luna (o genial polígrafo espanhol) isto, sem falar, em escritos que coloquem em cheque mentiras históricas e falsos enredos políticos cuidadosamente inoculadas por grupos de pressão nas mentes brasileiras.

Voltando a Holman, seu objetivo é apresentar um panorama da visão de mundo esotérica ocidental, com foco em seus “aspectos psico-espirituais e cosmológicos”, com altas doses de sincretismo. O primeiro ponto que incomoda o observador perspicaz é o fato do título não corresponder ao peso dado a diversas questões, sua priorização e ordem de exposição. Discute-se, “en passant”, escolas e autores que detêm parentesco direto, ou não, com a “filosofia perene”, ao invés de, simplesmente concentrar-se em seus principais expoentes, o que, por si, pagaria preço de venda do livro e agradaria a este pouco exigente leitor. Se nos esquecermos deste não tão desprezível senão, podemos saltar todas as páginas dedicadas à teosofia (à moda de HPB e da Sociedade Teosófica), neoplatonismo, cabala e passos da iniciação, entre outras, atendo-nos, por conseguinte à porção escrita que obedece estritamente ao escopo sugerido na capa.

Isto significa procedermos a um recorte compreendo o intervalo entre as páginas 16 e 54, que contêm rudimentos do ensinamento “perene” úteis ao neófito, na falta do original. Tais prolegômenos compreendem a adequada colocação histórica do problema, marcos “metodológicos” para  a análise “acadêmica” dos problemas colocados pelo esoterismo ocidental e noções de tradição, tradicionalismo e seus elementos principais. Além disso, com certo proveito para o estudante, a revisão de elementos-chave da contribuição de René Guénon nos soa proveitosa, ainda que a tradução, aqui e ali, se mostre sinuosa.

Guénon e sua mesa de trabalho no Cairo
O que é “philosophia perennis”? A cunhagem do termo tem sido geralmente atribuída a Gottfried Wilhelm Leibnitz em uma tentativa de analisar a “verdade e a falsidade de todas as filosofias antigas e modernas” o que lhe levaria a extrair “o ouro da escória, o diamante de sua mina, a luz das sombras”. Ele próprio sacou o termo da obra “De Perenni Philosophia (1540)” do teólogo do Século XVI Agostinho Steuco, bibliotecário do Vaticano. Para este, a “filosofia perene” tinha a ver como uma “verdade absoluta originalmente revelada”, uma “prisca teologia”, a “iluminação que emana da “Mens Divina”. Outros, fazem-na remontar a Marco Túlio Cícero, que já se referia a uma religião-Sabedoria original e universal, “Theosofia” (tal como empregada por Amônio Saccas e continuadores modernos como Helena Petrovna Blavatstky e, em tempos recentíssimos, Aldous Huxley).

Traçada a origem do termo, há que conferir-lhe correto tratamento metodológico. Afinal, nas últimas décadas do século XX o esoterismo penetrou, nem tão “a forceps” nas universidades, ainda que como “(...) uma linha de pensamento histórica, algo que poderíamos chamar de tradição ‘subterrânea’ do pensamento ocidental (...) . Para tratar este “pensamento subterrâneo”, a “(...) abordagem geralmente promovida (quando não prescrita) é a ‘agnóstico-empírica’. Como “abordagem agnóstico-empírica” se quer dizer que, o “(...) o que é observável para todos nós (com algum esforço e com a mente humana comum) são as concepções dos esoteristas, não de que essas concepções são ou podem ser (da Realidade Divina). Essas concepções, à medida que as formos abordando, serão apresentadas de maneira ‘neutra’ (isto é, sem que haja manifestação de uma opinião acerca de sua veracidade), e este estudioso do esoterismo ocidental não é – que fique claro desde já – operacionalmente um esoterista, mas sim (...) um ‘esoterólogo’.”.

Trocando em miúdos, um esotórologo é alguém que admite de forma “neutra” as concepções dos praticantes de esoterismo, abstraindo-se seus fatores divinos, cuja percepção atina ao esoterista, a (...) a pessoa cuja experiência decorre de trilhar o Caminho com tudo que isso implica, inclusive o desejo de renascimento espiritual, em primeiro lugar”. O enfoque “agnóstico-empírico”, sem bem entendi, pode ter suas lacunas preenchida  por um esforço “etnometodológico” ou “gnóstico”. Assim, “Se desejarmos realmente entender o esoterismo, a única abordagem é a de um ‘insider’, ou seja, de alguém que conhece alguma coisa por dentro”, o que não descarta uma abordagem empírico-histórica usada por esoteristas-historiadores como G.R.S. Mead e Manly P. Hall, mas o mais importante a reter é que a “(...) a prática teúrgica antes da atividade erudita. Podemos ter tanto esooteristas quando esoterólogos, porém o que tem importância crucial é que não precisamos ser esoterólogos para ser esoteristas”.

O autor ao menos é realista acerca das limitações do seu próprio procedimento como esoterólogo, ao reconhecer que “(...) o estudo de textos como atividade de apoio apenas, com isso, implicando que, por mais que possa revelar acerca de um domínio empírico que chamamos de 'pensamento esotérico ocidental', a pesquisa acadêmica comum sempre continuará, por sua natureza limitada (sendo não procedimental), girando em órbita do verdadeiro material”.

Após seus comentários às novas metodologias empregadas para a compreensão do esoterismo, são repassadas antigas tradições que formaram sua matriz no Ocidente (o gnosticismo, o neoplatonismo e o hermetismo), até as leituras de René Guénon no Século XX, o fundador, por assim dizer, da escola “tradicionalista” da “Sophia Perennis”, espécie de conhecimento superior ao qual se poderia acessar por meio da “intuição intelectual”. Para Guénon, esta “Sabedoria Primordial” expressava-se em símbolos comuns às principais religiões do mundo, tendo como instrumento “par excellence” a literatura sapiente de cada um deles. Para descobrir seu significado, é preciso recorrer à gnose, o que permite que se fale um cristianismo esotérico, hinduísmo esotérico ou simples praticantes do esoterismo que sustentam sua própria religião.
Guénon e Schuon. Cairo

Não se trata apenas de uma “tradição esotérica ocidental” segundo Guénon, mas de uma “Tradição” que se origina no passado e tem continuidade no futuro, no Sempreterno. Desse modo, “(...) nossa cultura ocidental moderna (pós-medieval) não é Tradicional e, poderíamos inclusive reconhecer, é até antitradicional, diferindo de praticamente todas as demais culturas anteriores do planeta. Portanto, a modernidade assistiu a 'degeneração' (...)) da civilização humana numa era de Trevas, onde a luz da Tradição se extinguiu ou, na melhor das hipóteses, só brilha debilmente”.
Mas o que difere o “tradicional” do “antitradicional”? Resumidamente, princípios como:

a) Quantidade e Qualidade, o homem olhando “horizontalmente para fora”, a “(...) dimensão quantitativa, empírica, que se opõe à dimensão metafísica (quantidade como raciocínio discursivo e a qualidade se correlacionaria ao conhecimento);

b) o Absoluto, o Uno, Involução e Evolução: o Absoluto por trás do Uno, que se relaciona a um princípio por trás da natureza logóica, Uno este ao qual “do terceiro aspecto como o princípio da Matéria, o segundo aspecto como princípio da Consciência e o primeiro aspecto como o princípio do Espírito”;

c) Sempreternidade e Tempo: “Aquele que está por trás de nosso sistema cósmico pensa, todas as coisas da nossa realidade sensível se manifestam”. Neste ponto, é fundamental ter em conta que “eternidade significa duração infinita, referindo-se ao tempo “exotérico”. Sempreternidade, outro conceito decisivo, refere-se ao 'sempre agora' (Coomaraswamy a chamava de 'agora sempre') ou o momento esotérico dentro de cada momento do tempo exotérico. Portanto, o Eu supremo do homem, o espírito, reside em Deus e, portanto, o tempo esotérico. Em termos mais amplos pode-se então distinguir três tipos de tempo: 1) o tempo que o personagem mede; 2) o sempreterno e o 3) o “tempo da consciência”. Assim “(...) a evolução da consciência se processa em seu próprio ritmo. “A Sempreternidade é ainda mais fundamental. O homem identifica-se primeiro com o círculo (e com o tempo do personagem); em seguida com a linha (tempo da Consciência) e, por fim, com o ponto (Sempreternidade)”.

d) Hierarquia e Gnoseologia: A realidade se divide em níveis, a existência evolui à medida que os níveis se tornam mais altos. Em cada nível “há seres superiores e inferiores a nós, o que nos colocar em nosso verdadeiro lugar no universal”.
Deuses como graus de percepção.  O próprio conceito da filosofia envolve mais que o simples estudo.

d) Visão Tradicionalista da História e do Doutrinarismo: Nossa “consciência de dimensão quantitativa” pode ter crescido ao longo do tempo, mas até a Idade Média, a dimensão qualitativa continuou a ser 'reconhecida' no Ocidente (por meio de uma Grande “Cadeia de Existência”).

Em sua “Unidade Transcendente das Religiões”, Frithjof Schuon também se refere a alguns trações inerentes à filosofia perene que são: : 1) Os estágios sucessivos da realidade; 2) A realidade não é objetiva (ela é 'experiência de Deus'), 3) A experiência de Deus  - o Intelecto divino – está 'por trás' da experiência consciente de todas as criaturas, o que nos permite dizer que ela está em todas as criaturas; 4) a dualidade do exoterista verifica-se entre ele como criatura e Deus como Existência – portanto, entre dois aspectos dele mesmo. O esoterista reconhece a realidade dessa dualidade. 6)  O absoluto é a razão da existência, não há o que perguntar; 7)  a Existência é inescapável e, no que diz respeito a isso, podemos dizer que não temos livre arbítrio. Porém isso aplica somente a nossa condição humana, não à nossa divindade.

 
Para os tradicionalistas, na visão de René Guénon, a “(...) a mentalidade moderna é simplesmente o produto de uma vasta sugestão coletiva, a saber, a de que este mundo do homem e da matéria é a única realidade, e para Evola [um autor tradicionalista com idéias próprias mas que também se referencia em Guénon], esse mudança foi uma 'decisão metafísica' que tomamos (portanto na qual não podemos voltar atrás) com nosso livre-arbítrio”. Entretanto, sublinha que “(...) 'tradicionalismo' denota apenas uma tendência, que não implica nenhum conhecimento efetivo das verdades tradicionais”.

Não falta ao expoente maior do “Sophia Perennis” uma periodização das Eras (Krta, Treta, Dvapara e Kali Yugas)  – assim como o fizeram todas as Tradições do passado, da Índia, à Grécia e Roma. Esta classificação pode ser explicada nos termos do esquema de Giambattista Vico, que propõe uma Idade dos Deuses, dos Heróis e uma dos Homens, em que, na primeira, os deuses falam diretamente aos mortais por meio de seus sacerdotes (iniciadores) e, na última a humanidade passa a ser governada por homens comuns, com uma linguagem comum.

Aprofundando sua análise, no livro “O Reino da Quantidade e os Sinais do Tempo”, que veio à lume em 1953,  Guénon aponta o rumo antitradicionalista tomada pela humanidade a partir do Renascimento, desembocado no materialismo e correntes assemelhadas que se 'insinuaram-se na mentalidade geral e, finalmente, conseguiram estabilizar essa atitude sem recorrer a nenhuma formulação teórica'. Ou seja, o home mecanizou a tudo e a si mesmo, 'caindo pouco a pouco em unidades numéricas, parodiando a unidade mas perdido na uniformidade e na indistinção da 'massa'.

Porém, à humanidade ainda cabe algum alento. Pode ser que estejamos no fundo do poço, mas o caráter cíclico das eras - ensina o Mestre da Tradição - assegura-nos que à frente teremos uma nova Idade de Ouro, na qual a Filosofia Perene será abraçada por todos.

terça-feira, janeiro 03, 2012

Paul Johnson. Sócrates - Um Homem para nossos Tempos ("Socrates - A man for our times")



Socrates - A Man for our Times
O livro “Socrates – A Man for our Times” (“Sócrates – um Homem para nossos Tempos”) do historiador Paulo Johnson, lançado pela Penguin Books em 2011 (e ainda sem edição brasileira) é trabalho de alto nível e que instiga o leitor a vôos mais altos. Não faltaram críticos como David Mikics acusando Johnson de simplificar excessivamente seu retratado ou vestir-lhe como um “conservador” dos nossos tempos, mas a despeito do que se diga do livro ele tem ao meu ver três méritos notáveis: isola o que poderia ser o verdadeiro Sócrates, cujas opiniões e abordagem são bem distintas do “boneco articulado” criado por seu discípulo Platão, aponta sua condição de simples cidadão ateniense e escrutinador da natureza interna dos homens, de todas as classes sociais e esclarece com maestria inúmeros pontos obscuros da trajetória do filósofo entre sua condenação e a morte por ingestão da taça de cicuta.

Sócrates sempre estava de bom humor. Andava com as pernas arqueadas, para os padrões da Hélade era feio como um sátiro e, volta e meia, via-se identificado com horrendo e mitológico Sileno, ostentando na velhice uma  pança significativa. Não dava atenção à vestimenta ou a aquisição de bens materiais, preferindo um bom pedaço de pelo para confeccionar sapatos a um lote para erigir sua moradia. Bom soldado, sua coragem em batalha fora exaltada por Alcebíades. Lutava descalço e sem qualquer proteção sob o rigor do inverno ático, com aspecto tão duro que amendrotava os combatentes inimigos. Pai de família e admirador da sabedoria feminina (celebrou o espírito e amou a companhia intelectuais e filósofas notáveis como Diotima e Aspásia), Sócrates era um cidadão ateniense exemplar. Amava sua cidade, na qual era louvado por amigos, políticos e homens simples de diferentes ocupações. Outros o odiavam e caricaturavam, entre eles alguns professores e catedráticos muito parecidos com os sacripantas dos atuais departamentos universitários (os sofistas) e autores como Aristófanes (que o pintara como um sátiro maléfico e astuto em “As Nuvens). É claro que dada a inclinação da massa medíocre à manipulação mentirosa - que tal como hoje, em menor escala, também surtia seu efeito danoso - não era pequeno o número de seus detratores e algozes. 

Não conhecemos com exatidão o que Sócrates realmente disse. O que nos chegou veio através de Platão, que projetara a si mesmo em seus diálogos, parindo um “golem”, um “boneco articulado” que alguns analistas apelidaram de “PlatSoc”. Não era o Sócrates de carne e osso que falava amíude, mas a criatura com os cordões puxados pelo ventríloquo platão, salvo em raríssimas oportunidades como na “Apologia”, um registro “verbatim” do que dissera a seus interlocutores como defesa em seu próprio o julgamento.

Este Sócrates cuja vida fora tão misteriosa quanto a morte, nada escreveu. Não criou academias ou liceus, como Platão e Aristóteles. Nada afirmou de peremptório e jamais sustentou apego a crenças  sobre o além túmulo angariadas nos cultos de mistérios, como Platão. Não há um “sistema socrático”, mas apenas o dever, inspirado por seu “daimon” pessoal de examinar os homens e “partejar” a verdade que se encontra em seu interior empregando o “elenchos”, técnica semelhante à que os juízes empregam nos tribunais para extrair a verdade. O objeto de Sócrates era a virtude, nada mais que isso. Seu ensinamento condenava o relativismo moral tão ao gosto dos atenienses e que servia de matéria-prima a alguns sofistas, aos quais era maliciosamente associado (ou por pura ignorância, como era o caso de Aristófanes).

Sua obra era a construção de homens e mulheres bons, virtuosos. Nada mais que isso. Nesta tarefa, para a qual recebeu a paga que todo o mundo conhece, foi mestre de ilustres cidadãos atenienses como Critias e Alcibíades, que implicados, respectivamente, no violento governo dos “Trinta Tiranos” e na ardilosa manobra que conduzira a cidade à guerra da Sicília (o maior dos desastres  militares atenienses) representaram sua ruína. O que Johnson especula – na falta de indicações mais precisas – é que no clima de revolta e dor que se seguira à mortandade de supostos inimigos do Estado (durante a tirania), Meletos lançara a acusação infundada de impiedade (isto é, não adorar os deuses que o Estado adora) e corrupção da juventude como forma de encontrar, na pessoa de Sócrates, um bode expiatório para seus próprios erros. Mercê de sua fidelidade às próprias ideias e à fina ironia com que conduziu sua defesa (que irritara sobremodo o júri) – o filósofo recebeu sua pena, escolhendo a morte por cicuta em lugar de abandonar sua querida cidade.

Sem comparar Sócrates a Jesus (ou Platão a Paulo), a obra mais uma vez cala fundo no coração deste leitor. O que se depreende da vida e morte daquele que se atingira a glória de ser o maior filósofo do Ocidente é que todos aqueles que cultivam princípios e os partilham, ao invés de submeter-se à mesquinhez dos tiranetes de plantão, convertem-se em sérios candidatos ao cadafalso pelo inexpiável crime de não adorar os deuses da cidade (ou os voláteis princípios ideológicos de ocasião impostos por pequenos grupos de pressão e interesses políticos miúdos) e “corromper a juventude” (proclamando-lhe os princípios necessários ao enfrentamento das manobras conduzidas pelas mesmas minorias que controlam o aparato social).

Ofereçamos um galo a Asclépio!