Mas tenho que convir que estes trechos extraídos dos capítulos iniciais de "A Crise do Mundo Moderno" exprimem com invejável rigor a natureza de eventos que se desenrolam deste o século VI A.C com breves interrupções ao longo da história. Vale a pena lê-los.
“Portanto, se se diz que o Mundo
Moderno sofre uma crise, o que se entende mais habitualmente por isso é que ele
chegou a um ponto crítico, ou, noutros termos, que uma transformação mais ou
menos profunda está iminente, que uma mudança de orientação deverá
inevitavelmente produzir-se a breve prazo, a bem ou a mal, de modo mais ou
menos brusco, com ou sem catástrofe”. Pg. 27/28.
“Mas na própria palavra ‘crise’
outras significações estão contidas, que a tornam mais apta a exprimir o que
queremos dizer: ‘efetivamente, a sua etimologia, que muitas vezes se perde de
vista na linguagem corrente, mas à qual convém reportamo-nos, como se deve
sempre fazer quando se quer restituir a um termo a plenitude do seu sentido
próprio e do seu valor original, a sua etimologia, dizíamos, fá-la parcialmente
sinônimo de ‘julgamento’ e de ‘discriminação’.
“Diremos, então, para remeter as
coisas às suas justas proporções que parece que nos aproximamos realmente do
fim de um Mundo, ou seja, do fim de uma época ou de um ciclo histórico que
pode, além disso, estar em correspondência com um ciclo cósmico, segundo o que
ensinam a este respeito as doutrinas tradicionais”. Pg. 34.
Capítulo Primeiro – A Idade
Sombria
“Mas, perguntarão, sem dúvida,
porque é que o desenvolvimento cíclico se deve assim cumprir num sentido
descendente, indo do superior para o inferior, o que, como será facilmente
notado, é a própria negação da idéia de ‘progresso’, tal como os modernos a
entendem? É que o desenvolvimento de toda a manifestação implica
necessariamente um afastamento cada vez maior do princípio do qual ela procede;
partindo do ponto mais alto, ela tende forçosamente para baixo, e, como os
corpos pesados, tende para esse sentido com uma velocidade sem cessar
crescente, até que encontra finalmente um ponto de paragem. Esta queda poderia
ser caracterizada como uma materialização progressiva, porque a expressão do
princípio é pura espiritualidade”. Pg. 36
“Há um fato bastante estranho,
que parece nunca ter sido notado como merece: é que o período propriamente
‘histórico’, no sentido que acabamos de indicar, remonta exatamente ao século
VI antes da era cristã, como se houvesse aí, no tempo, uma barreira que não é
possível transpor com a ajuda dos meios de investigação de que dispõem os
investigadores vulgares”.pg. 39
“No século VI antes da era cristã
produziram-se, qualquer que tenha sido a sua causa, mudanças consideráveis em
quase todos os povos; estas mudanças apresentaram, aliás, características
diferentes conforme os países”. Pg. 40
IMPORTANTE
“Mas, por outro lado, viu-se
aparecer, em breve, alguma coisa de que não se tinha ainda tido nenhum exemplo
e que deveria seguidamente exercer uma influência nefasta sobre todo o mundo
ocidental: referimo-nos a esse modo especial de pensamento que tomou e
conservou o nome de ‘filosofia’; e este ponto é bastante importante para que
nos detenhamos nele alguns instantes”.pg. 42
“A palavra ‘filosofia’, em si
mesma, pode seguramente ser tomada num
sentido muito legítimo, que foi sem dúvida o sem sentido primitivo, sobretudo
se é verdade que, como se pretende, foi Pitágoras o primeiro a utilizá-la.
Etimologicamente, não significa senão ‘amor de sabedoria’; designa, então,
primeiramente, uma disposição prévia requerida para alcançar a sabedoria, e
pode designar também, por uma natural extensão a procura que, nascendo dessa
disposição, deve conduzir ao conhecimento. É então apenas um estádio preliminar
e preparatório, um caminhar para a sabedoria, um grau correspondente a um
estado inferior a esta; o desvio que se produziu depois consistiu em tomar este
grau transitório pelo próprio fim, em pretender substituir a sabedoria pela
‘filosofia’, o que implica o esquecimento ou o desconhecimento da verdadeira
natureza desta última. Foi assim que nasceu o que nós podemos chamar a
Filosofia ‘profana’, ou seja, uma pretensa sabedoria puramente humana, portanto
de ordem simplesmente racional, tomando o lugar da verdadeira sabedoria
tradicional, supraracional e ‘não humana’. No entanto, subsistiu ainda alguma
coisa através de toda a Antiguidade; o que o prova é primeiramente a
persistência dos ‘mistérios’, cujo caráter essencialmente ‘iniciático’ não pode
ser contestado, e é também o fato de que o ensino dos próprios filósofos tinha
simultaneamente, na maior parte dos casos, um lado ‘exotérico’ e um lado
‘esotérico’, este último permitindo a ligação a um ponto de vista superior, que
se manifesta, aliás, de maneira muito nítida, embora talvez incompleta, em
certos aspectos, alguns séculos mais tarde entre os Alexandrinos. Para que a
filosofia ‘profana’ fosse definitivamente constituída como tal, era preciso que
só o ‘exoterismo’ permanecesse e que se fosse até a negação pura e e simples de
todo o ‘esoterismo’; era precisamente ao que deveria conduzir, entre os
modernos, o movimento começado pelos gregos; as tendências que se tinham
afirmado entre estes deveriam, então, ser levadas até às suas conseqüências
mais extremas, e a importância excessiva que eles tinham acordado ao pensamento
racional ia ainda acentuar-se para chegar ao ‘racionalismo’, atitude
especialmente moderna, que consiste, não apenas simplesmente em ignorar, mas em
negar expressamente tudo o que é de ordem supraracional; mas não antecipemos
demasiado, porque devemos voltar a falar destas conseqüências e a ver o
desenvolvimento delas numa ou outra parte de nossa exposição”. Pgs 43/44.
“convém procurar na Antiguidade
‘clássica’ algumas das origens do Mundo Moderno; este não está, portanto,
inteiramente errado quando se reclama da civilização Greco-latina e pretende
ser seu continuador”. Pg. 344
“No entanto, devemo sublinhar que
se trata apenas de uma continuação longínqua e um pouco infiel, porque, apesar
de tudo, havia nessa Antiguidade muitas coisas de ordem intelectual e
espirituala, das quais não se poderia encontrar equivalente entre os modernos;
são, em todo o caso, dois graus bastante diferentes do obscurecimento
progressivo do verdadeiro conhecimento”. Pg. 44
“(...) a civilização Greco-latina
devia terminar e a correção devia vir de outro lado e operar-se sob outra
forma. Foi o Cristianismo quem efetuou essa transformação; e, notemo-lo de
passagem, a comparação que se pode estabelecer, sob certa relação, entre esse
tempo e o nosso é talvez um dos elementos determinantes do ‘messianismo’
desordenado que aparece atualmente à luz do dia. Depois do conturbado período
das invasões bárbaras, necessário para concluir a destruição do antigo estado
de coisas, uma ordem normal foi restaurada pra durar alguns séculos; foi a
Idade Média, tão desconhecida dos modernos, que são incapazes de compreender a
sua intelectualidade e para quem essa época aparece certamente muito mais
estranha e distante do que a Antiguidade ‘clássica’. Pg. 45
“A verdadeira Idade Média, para
nós, estende-se do reinado de Carlos Magno até o começo do século XIV; nesta
última data começa uma nova decadência que, através de diversas etapas, ir-se-á
acentuando até nós. É aí que se situa o verdadeiro ponto de partida da crise
moderna; é o começo da desagregação da ‘Cristandade’; à qual se identificava
essencialmente a civilização ocidental da Idade Média; é, ao mesmo tempo que o
fim do regime feudal, estreitamente solidário com essa mesma ‘Cristandade’, a
origem da constituição das ‘nacionalidades’. Será então necessário fazer
remontar a época moderna a cerca de dois séculos mais cedo do que o habitual; a
Renascença e a Reforma são sobretudo resultantes e só possíveis pela decadência
prévia; mas, bem longe de serem uma reparação, elas marcavam uma queda muito
mais profunda, visto que consumaram a ruptura definitiva com o espírito
tradicional, uma delas no domínio das ciências e das artes, a outra no próprio
domínio religioso, que era, no entanto, aquele onde tal ruptura teria podido
parecer mais dificilmente concebível”. Pg. 46
“O que se designa por
Renascimento foi, na realidade, como já temos dito noutras ocasiões, a morte de
muitas coisas; sob pretexto de voltar à civilização Greco-romana, só se tomou o
que esta tinha de mais exterior, porque apenas isso se tinha podido exprimir
claramente nos textos escritos; e essa incompleta restituição apenas poderia
ter um caráter muito artificial, visto que se tratava de forma que desde há
séculos tinham cessado de viver a sua vida autentica. Quanto às ciências tradicionais
da Idade Média, após algumas derradeiras manifestações nessa época,
desapareceram totalmente, tal como as das longínquas civilizações que foram
outrora aniquiladas por algum cataclismo; e dessa vez nada viria substituí-las.
A partir daí, só houve a Filosofia e a Ciência ‘profanas’, ou seja, a negação
da verdadeira intelectualidade, a limitação do conhecimento à ordem mais
inferior, o estudo empírico e analítico de fatos que não se encontram ligados a
qualquer principio, a dispersão numa multiciplidade indefinida de detalhes
insignificantes, a acumulação de hipóteses sem fundamento, que se destroem
incessantemente umas às outras, e de visões fragmentárias que a nada podem
conduzir, salvo a aplicações práticas que constituem a única superioridade
afetiva da civilização moderna; superioridade, aliás, pouco invejável, e que,
desenvolvendo-se até abafar qualquer outra preocupação, deu a esta civilização
o caráter puramente material que faz dela uma verdadeira monstruosidade”.