Aqueles eram dias nublados em Atlântida. Por séculos o Magistrado-Reio Kut-Al-Atl havia governado com sabedoria o país, estendendo a mão ao pobre e conservando a riqueza do trabalho ao favorecer o comércio, as artes e a ciência. Já ancião, preferira indicar seus prepostos a governar e abdicara dos afazeres da magistratura, dedicando-se ao "Grande Senado Atlante", no qual redigia e fazia publicar novas leis para o país. Ocasionalmente, atendendo pedidos de seus filhos e netos, retornava ao palácio de Governo e auxiliava pessoalmente os prepostos, encarregando de algo que fatigava a maior parte dos habitantes da nação e horrorizava os mais sensatos, aquilo que os modernos conheceriam por "política" centenas de milhares de anos depois, em um pequeno país insular de um continente que sequer havia sido formado.
Kut-Al-Atl rejuvenescera a nação em seu próprio tempo, debelara as sedições locais e havia aniquilado todo o poder dos "chefetes" locais e suas cliques de bandoleiros, os "Duques-negros", que tiravam proveito do vácuo de poder ou do mínimo enfraquecimento do governo central para lançarem suas garras sobre as riquezas sob sua guarda direta. Eram insaciáveis, brutos e famintos por riquezas e em consórcio com seus amigos, os Magos Negros de Atlântida, abusavam da bruxaria e expedientes dos mais maldosos a fim de atingir estender os limites de seu poder pessoal.
Os Duques foram aniquilados por uma ambição mórbida que os corroía. Todos os recursos que eram extirpados dos pobres habitantes das potestades e os lucros do comércio de "babau", um fruto muito apreciado em Atlântida e exportado para muitas nações, eram dissipados em beberagens, em orgias, despesas suntuárias, construção de templos para demônios protetores e sustento de uma prole numerosa e faminta. A corrente ininterrupta de riquezas que fluía para a família dos nobres locais esvaía-se de suas mãos e raramente se empregava na produção. Dizia-se que o "ouro se fazia pó" e enquanto o povo lambia os ossos do gado os Duques tinham as ceroulas dançando na barriga...
Quando Kut-Al-Atl era um jovem, promissor e robusto, todas as suas forças foram empregadas na luta contra esses usurpadores. Eles elegiam a em troca de alforjes de dinheiro os governadores da pátria, quase nunca abençoados pelos principais Sacerdotes do Reino. Com seu dinheiro escolhiam os governantes mas não atraíam os corações do povo, que continuava fiel à antiga linhagem dos Kut-Al-Atl. Quando o novo Juíz-Governante se levantou do seu sonho da juventude (conforme diziam, naqueles tempos), o povo já estava maduro, aguardando um novo líder que o guiaria a um futuro radioso, portador da glória e progresso material.
Kut-Al-Atl dirimiu as dúvidas quanto à sua relação e aliou-se aos que outrora eram fracos. Escolheu entre os seus principais homems de saber reconhecido, filósofos e magos, ignorando os sicofantas conhecidos no país. Com fúria ímpar queimou a ferro e fogo os santuários dos magos negros e lançou às chamas os adoradores dos demônios. Não obstante sua fúria de juiz, ignorou os apelos da plebe ignara e feroz, poupando os instruídos e sábios que seriam capazes de auxiliá-lo em empreitadas próximas, dando mostras da magnimidade e presença de espírito que o fariam um dos maiores Governantes de Atlântida, aquele que os propósitos do Cosmos destinariam a velar pelo Fundador da Religião Maior do Futuro.
O "velho", assim era conhecido Kut-Al-Atl entre o povo, adquirira imenso poder ao erigir um vasto império, compreendendo terras á Oeste e Leste do país. Seus pequenos opositores eram ridicularizados ao criticar o sistema, que a um só tempo reduziu a pobreza e promoveu uma paz duradoura. Mas no decorrer dos anos as pessoas se esqueceram do que havia sido a Atlântida no auge dos Magos Negros, da espoliação e miséria que lhes haviam sido impostas pelos facínoras que se apoderaram do Estado. Os jovens queriam conhecer "o novo" e naquela época palavras belas como "governo do povo" e "alternância do poder" soavam bem aos ouvidos pueris.
Para o contingente de jovens contestadores Kut-Al-Atl era o "antigo". Estavam sequiosos pelo "novo", mesmerizados pela idéia da "mudança". O mal voltou a impregnar o ambiente, as vibrações maléficasdos magos negros animaram as mentes que viriam a se agrupar no "Partido dos Trabalhadores". Um ente tão pequeno e desprezado, sem a necessária vigilância dos governantes da nação, tomou então as rédeas do poder com grande sobressalto da parte de Kut-Al-Atl e de todos os seus aliados. Outra palavrinha "mágica" muito em voga entre aqueles que haviam se esquecido do passado - "eleições" - jogara por terra anos de progresso material e crescente prosperidade. Neste novo ambiente de incerteza e mentira, nasceria o portador do futuro.