O que dizer de uma obra lançada em 1975 e que mantém válidos seus postulados essenciais? Este é o caso de "Libertação Animal", livro escrito pelo professor australiano de bioética Peter Singer. Se hoje em dia muita gente adotou o vegetarianismo integral, uma versão parcial dele ou, simplesmente, absteve-se de uma alimentação à base de produtos processados em instalações da indústria de corte ou latícinios que maltratem os animais, isto se deve ao trabalho pioneiro do Sr. Singer, sem sombra de dúvida. Estamos no século XXI e ainda hoje em dia milhões de pessoas ingerem carne ou produtos de origem animal desconhecendo como são obtidos e a maneira como são tratados os animais em seus criadouros (confinados em baias diminutas que não lhes permite movimentos básicos como virar-se, levantar-se, deitar-se, limpar-se, esticar-se ou simplesmente dar vazão a seus instintos), abatidos (com métodos intensamente dolorosos ou às vezes brutais como aqueles preconizados pelo judaísmo ou islamismo ortodoxos) e processada sua carne (por exemplo, montando-se embalagens com os membros que restaram de frangos despeçados por bicadas de seus congêneres em compartimentos de engorda com tamanho muito aquém do ideal). Por mais incrível que pareça, crianças são "doutrinadas" desde que nascem a comer carne, sendo levadas a crer piamente que um bife nada mais é que uma suculenta peça (talvez como um "donuts" que provém não se sabe de onde) e bois, bezerrinhos e vacas pastam divertidamente nas pradarias (como naquela joguinho "Fazenda Feliz" do Orkut). Para completar o "cardápio" é incutida nos pimpolhos a indiscutível "verdade" de que uma dieta que subtraia carne, ovos, leite e seus derivados de sua mesa é potencialmente mortal em virtude de sua carência proteíca.
Transcorridos 37 anos de sua primeira formulação, os argumentos apresentados por Singer em sua obra seminal permanecem atuais, tendo recebido ao longo de sucessivas edições alguns retoques nas cifras envolvidas no cômputo de atrocidades cometidas em fazendas industriais ou, então, nos resultados nefastos da produção de carne, ovos e leite para consumo humano sobre o meio ambiente. Além disso, graças à atuação de Organizações Não-Governamentais (um dos exemplos é a PETA ou "People for The Ethical Treatment of Animals"), dispendiosas e inúteis pesquisas com "cobaias" (cães, gatos, hamsters, pássaros, guaxanins e até elefantes) têm sido submetidas a controle mais rigoroso, ao menos em alguns países centrais.
A linha de discussão do livro como um todo gira em torno da tese central desenvolvida em seu primeiro primeiro capítulo de "não existe uma razão obrigatória, do ponto de vista lógico, para pressupor que uma diferença factual de capacidade entre duas pessoas justifique diferenças na consideração que damos a suas necessidades e a seus interesses. O princípio da igualdade dos seres humanos não é a descrição de uma suposta suposta igualdade de fato existente entre seres humanos: é a prescrição de como devemos tratar os seres humanos".
Tomando como linha de base as conhecidas justificativas do racismo e do "sexismo" (a notória inclinação humana a conceder privilégios a determinado sexo, em detrimento de outro), Singer chamou então de "especismo" o "preconceito ou atitude tendenciosa de alguém a favor dos interesses de membros da própria espécie, contra os de outras".
Esta abordagem o conduz à fórmula que o filósofo utilitarista do século XVIII Jeremy Bentham incorporou a seu peculiar sistema ético, ou "cada um conta como um e ninguém como mais de um", o que equivale a dizer que os interesses de cada ser que é afetado por uma ação devem ser levados em conta, recebendo o mesmo peso que interesses semelhantes de qualquer outro ser. Outro utilitarista, Henry Sidgwick viria a expressar a mesma idéia como se "o bem de qualquer indíviduo não tivesse importância maior, do ponto de vsita (se assim se pode dizer) do Universo, do que o bem de qualquer outro".
Para Singer, "uma das implicações desse princípio de igualdade é que nosso interesse pelos outros e nossa prontidão em considerar seus interesses não devem depender a aparência ou das capacidades que possam ter". Retomando Bentham, trata-se precisamente da "capacidade de sofrer como a característica vital que confere a um ser o direito a igual consideração". E os animais sofrem, e muito, o que é demonstrado por sinais externos comuns ao ser humano (gritos, contorções, espasmos, diarréia e movimentos involuntários de terror no movimento do abate) como pela comprovação de que as características de seu sistema nervoso são bem parecidas com as nossas. Este raciocínio vale tanto para mamíferos (os porcos, por exemplo, são tão ou mais inteligentes que os cães) como para pássaros, peixes ou até mesmo ostras e mexilhões. Os peixes e répteis, contrariando o senso comum e as "lendas de pescadores" têm praticamente o mesmo comportamento dos mamíferos no momento da dor. Embora possuindo o sistema nervoso diferente, compartilham sua estrutura básica das vias nervosas centrais, inclusive possuindo vocalização, não audível para ouvidos humanos.
Para evitar o especismo, então, é necessário "admitir que seres semelhantes, em todos os aspectos relevantes, tenham direito semelhante à vida. O fato de um ser pertencer à nossa espécie biológica não pode constituir um critério moralmente relevante para que ele tenha esse direito. Isto, entretanto, não elimina a questão de que todas as vidas tenham igual valor. Há uma nítida distinção colocada por Singer entre "não infligir dor aos seres" e "tirar suas vidas". São questões bem diferentes, até certo ponto. Embora uma perpectiva humanista tenha de ser calcada na minimização do sofrimento imposto aos animais (regulamentando seu uso em pesquisas científicas, criando condições menos penosas para o abate e confinamento etc), isto não significa que uma decisão do tipo "quem deve viver" seja tomada em termos simplistas. Singer conclui que "a rejeição do especismo não implica que todas as vidas tenham igual valor. Embora a autoconsciência, a capacidade de pensar o futuro e de ter esperanças e aspirações, bem como a de estabelecer relações significativas com os outros, e assim por diante, não sejam relevantes para a questão de infligir dor - uma vez que a dor é dor, sejam quais forem as demais capacidades que o ser tenha, além daquela de sofrer -, essas capacidades são relevantes para a questão de tirar a vida. Não é uma arbitrariedade afirmar que a vida de um ser autoconsciente, capaz de pensamento abstrato, de planejar o futuro, de ações complexas de comunicação e assim por diante, é mais valiosa do que a vida de um ser que não possua essas capacidades".
Como um todo, o trabalho de Peter Singer ainda se constitui em um manancial inesgotável de questionamentos filosóficos. Acrescido de substancial aporte empírico relativo aos experimentos de laboratório envolvendo animais nos campos da psicologia, medicina, veterinária, indústria militar e testes de produtos (sobretudo dermatológicos) e das reais condições de vida dos animais na indústria de processamento de carnes, ovos e laticínios; sua leitura é essencial. Enquanto incentivo às práticas vegetarianas - em uma escala que vai da simples rejeição da produtos animais obtidos por meios cruéis até a plena abstenção seus derivados - ainda é positivamente recomendável, sobretudo porque em muitos países - não só da periferia, mas do primeiro mundo "desenvolvido" - insiste-se em tratar animais como meras coisas ("autômatos" como diria Déscartes) à mercê dos caprichos humanos. Da mesmíssima forma como, vergonhosamente, abusava-se dos escravos em passado não tão longínquo.
SINGER, Peter. Libertação animal. O clássico definitivo sobre o movimento pelos direitos dos animais. São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 2010. 461 pp.
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