TRECHO
Foto da antiga Loja Maçônica
Fidelidade Mineira, fundada em 1848. A oficina atual ocupa um andar em prédio mais moderno. |
Ouvi pela primeira vez a palavra
greve – dita por uma das minhas tias, tão baixo e com um ar de tal escândalo,
que pensei que fosse uma indecência igual às que tinha aprendido no Machado
Sobrinho, e corei até as orelhas. Mas pior, muito pior que as fábricas onde os
descontentes queriam ganhar mais do que precisavam; pior que o Cinema Farol e a
Politeama onde se tentavam timidamente os ensaios precursores da bolina (o
Politeama viu o primeiro mártir dessa arte nacional desmaiar de dor na sua
platéia; marido furibundo lhe empolgara com um alicate dedo da mão audaciosa
que se insinuara nas anáguas da mulher, para apertá-lo tão duramente e em tão
demorado silêncio que ficaram esmagadas as carnes e quebrados os ossos do moço
advogado), pior que os bordéis, pior que os colégios leigos e que o desaforo do
colégio metodista para meninas, pior que a Cervejaria Weiss animada por Brant
Horta, Amanajós de Araújo e Celso D’Ávila com guitarras, descantes, declamação
de versalhada e as chegadas dos tílburis carregados de “mulheres-damas” – era a
maçonaria. Sua loja ficava em plena
rua Direita, entre as do Imperador e da Imperatriz, como desafio permanente ao
clero diocesano e aos cristãos-novos e velhos do alto dos Passos.
Para cólera-que-espuma da sogra (“Cachorrão”! Coitada da minha filha...”), repugnância das cunhadas (“Pobre de nossa irmã, casada com bode preto!), consternação de minha Mãe (“Nossa Senhora, que pecado!) e escândalo da cidade (“Pobre moça! Também casar com nortista...) e animado por nosso primo Mário Alves da Cunha Horta, pedreiro-livre emérito, meu Pai ousara tripingar-se! Primeiro, cavaleiro da rosa-cruz. Depois da águia branca e negra. E freqüentava noitantemente a casa maldita, sempre escura, de janelas e portas herméticas. Lembro-me bem quando lhe passava em frente, com minha Mãe, ela descrevia uma curva prudente, largava o passeio e tomava a sarjeta para distanciar-se dos óculos gradeados do porão onde, diziam, havia um negro caprino cevado com carne podre de anjinhos e cujo bafo enxofrado era fatal.
Para cólera-que-espuma da sogra (“Cachorrão”! Coitada da minha filha...”), repugnância das cunhadas (“Pobre de nossa irmã, casada com bode preto!), consternação de minha Mãe (“Nossa Senhora, que pecado!) e escândalo da cidade (“Pobre moça! Também casar com nortista...) e animado por nosso primo Mário Alves da Cunha Horta, pedreiro-livre emérito, meu Pai ousara tripingar-se! Primeiro, cavaleiro da rosa-cruz. Depois da águia branca e negra. E freqüentava noitantemente a casa maldita, sempre escura, de janelas e portas herméticas. Lembro-me bem quando lhe passava em frente, com minha Mãe, ela descrevia uma curva prudente, largava o passeio e tomava a sarjeta para distanciar-se dos óculos gradeados do porão onde, diziam, havia um negro caprino cevado com carne podre de anjinhos e cujo bafo enxofrado era fatal.
Era de arrepiar ouvir o Mário
descrever as cerimônias iniciáticas daquele oriente... Nada, absolutamente nada
se comparava aos horrores por que ele tinha passado. Pura brincadeira o que o
Tolstoi descrevia na Guerra e Paz.
Pilhéria, água com açúcar, o que Alexandre Dumas traçava no José Bálsamo. Ele
mesmo, Mário, filho do Coronel Chico Horta e D. Regina Virgilina, ali, em Juiz
de Fora, depois de provações tremendas, de contatos cadavéricos, de ordálias de
gelo, fogo, escuridão e vácuo, exausto, sentira-se finalmente arrebatado pelos
cabelos, pelas orelhas, e esfocinhado à beira de um vórtice profundo. Os olhos,
vendados, pés e mãos lhe fugindo na ribanceira movediça. E o vento. Em
rodamoinhos, fazendo ruflar mortalhas e pendões. Ele não sabia bem se estava no
morro do imperador, nos altos da Mantiqueira, no pico do Cauê ou serrotes do
Itatiaia. “Pula, irmão” – ordenava-lhe voz cavernosa, “Pula, irmão” – retomavam
em coro outras vozes sepulcrais que o eco repetia de quebrada em quebrada. Sem
hesitação ele se atirara abismo abaixo, escuridão abaixo, morte abaixo... Mas
não caiu nem dois palmos. Sentiu logo um perfume inebriante, alcatifa sob os
pés, o amparo de braços amigos, luz, aconchego, vozes conhecidas: “Seja
bem-vindo, irmão”.
Um comentário:
A Fidelidade Mineira foi fundada em 1870, e não em 1848, conforme a legenda da foto.
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