Monsieur
Gurdjieff
Traduzido por CB , 22/11/2015 *
por Julius Evola (publicado
pela primeira vez em Roma, 16 de abril de 1972; primeira publicação desta
tradução francesa por Gérard Boulanger: A idade do ouro, primavera de
1987)
É
raro que apareçam em nossa época – onde eles correm o risco de ser confundidos
com certos mistificadores – personagens que nos façam tocar com o dedo, de
maneira inquietante, isto a que foi reduzida, metafisicamente falando, a
existência da grande maioria das pessoas.
A
essa categoria pertence, sem qualquer sombra de dúvida, o “misterioso Senhor
Gurdjieff”, a saber, George Ivanovitch Gurdjieff. A recordação de sua presença
e da influência que exerceu é ainda viva, mesmo tendo morrido há muitos
anos, como o testemunham as obras que lhe foram consagradas e mesmo os romances
onde figura sob um outro nome. Louis Pauwels, o autor da Manhã dos Mágicos,
pôde escrever um volume de mais de quinhentas páginas, objeto de duas edições
sucessivas, no qual recolheu um grande número de documentos – artigos, cartas,
lembranças, testemunhos – concernentes a ele. De fato, a influência de
Gurdjieff se estendeu aos meios mais diversos: o filósofo Ouspensky (que a
partir de sua doutrina, escreveu uma obra intitulada Fragmentos de um
Ensinamento Desconhecido, assim como uma outra,
A Evolução Possível do Homem, da qual uma tradução italiana foi
anunciada), os romancistas A. Huxley e A. Koestler, o arquiteto “funcionalista”
Frank Lloyd Wright, J.B. Bennet, discípulo de Einstein, o doutor Wakey, um dos
maiores cirurgiões nova-iorquinos, Georgette Leblanc, J. Sharp, fundador da
revista The New Statement: todos tiveram com Gurdjieff contatos que deixaram
traços.
Nosso personagem apareceu pela primeira vez em
São Petersburgo, pouco antes da Revolução de outubro. Não sabemos grande coisa
do que fez antes: ele mesmo se limitou a dizer que tinha viajado ao Oriente em
busca de comunidades que depositavam os restos de um saber transcendente. Mas
ao que parece, havia sido igualmente o principal agente tzarista no Tibete, que
deixou para se abrigar no Cáucaso onde foi, quando criança, condiscípulo de
Stalin. Na França, e em seguida em Paris, na Inglaterra e nos Estados Unidos,
consagrou-se à organização de círculos que seguiam seus ensinamentos, círculos
intitulados “grupos de trabalho”. Um editor francês que se retirou dos negócios
lhe ofereceu em 1922 a possibilidade de fazer do chatêau d'Avon, próximo à
Fontainebleau, sua “central” onde, em um primeiro momento, ele criou qualquer
coisa como um exílio ou eremitério. Entre os boatos que circulam a respeito,
alguns concernem ao domínio político. Gurdijieff havia tido contatos com Karl
Haushofer, o fundador bem conhecido da “geopolítica”, que ocupou o primeiro
plano no III Reich e, pretende-se mesmo que essas relações tenham presidido a
escolha da cruz gamada como emblema do nacional-socialismo, cuja rotação se efetua,
não em direção à direita, símbolo da sabedoria, mas à esquerda, símbolo do
poder (como foi efetivamente o caso).
Que mensagem anunciou Gurdjieff? Uma mensagem
ao menos desconcertante. Poucos homens “existem”, poucos têm uma alma
“imortal”. Alguns dentre eles possuem o germe dela, que pode ser desenvolvido.
Em regra geral, nós não possuímos um “Eu” de nascença: é necessário adquiri-lo.
Aqueles que não o alcançam se dissolvem com sua morte. “Uma ínfima parte dentre
eles chega a ter uma alma. ”
O homem na rua não é mais que uma simples
máquina. Ele vive em estado de sono, como se hipnotizado. Ele crê agir, pensar,
mas é “movido”. São os impulsos, os reflexos, as influências de toda ordem que
atuam sobre ele. E não tem um “ser”. As maneiras de Gurdjieff não tinham nada
de delicadas. “Você não pode compreender, você idiota completo, sua 'merdidade'
”, dizia ele em seu mau francês àqueles que dele se aproximavam. De Katharine
Mansfield, morta durante sua estadia no eremitério d'Avon em busca da “via”,
Gurdjieff declarou: “Eu não conheço”, querendo explicar por isto que a morte
nada era, que ela não existia.
A via ordinária é a a de um indivíduo continuamente aspirado, ou “sugado”, ensinava Gurdjieff. “Eu não sou aspirado pelos meus pensamentos, pelas lembranças, meus desejos, minhas sensações. Pelo bife que eu como, pelo cigarro que eu fumo, o amor que eu faço, os bons tempos, a chuva, a árvore, este veículo que passa, este livro. “Trata-se de reagir. De “despertar”. Então nascerá um “Eu” que, até então, não existia. Então ele aprenderá a ser, a ser dentro de tudo que ele faz e daquilo que se ressente, em lugar de representar mais que a sombra de si mesmo. Gurdjieff chamava “pensamento real”, “sensação real”, etc., isto que se manifesta de acordo com certa dimensão existencial absolutamente nova que a maioria das pessoas não podem nem mesmo imaginar. E ele distinguiu igualmente em alguns a “essência” da “pessoa”. A essência constitui a qualidade autêntica, a pessoa, o “indivíduo social”, construída de todas as peças, e exterior; estes dois elementos não são coincidentes, encontramos aqueles nos quais a “pessoa” é desenvolvida enquanto sua “essência” é nula ou atrofiada – e vice-versa. No nosso mundo, o primeiro caso prevalece; aquele de homens e mulheres cuja “pessoa” é exacerbada ao ponto de ser desmesurada, mas a essência está em um estado infantil – quando não é totalmente ausente.
Não é lugar aqui para evocar os procedimentos
indicados por Gurdjieff para “despertar”, para se ancorar na essência. O que
quer que seja, o ponto de partida seria o reconhecimento prático, experimental,
de sua própria “inexistência”, este estado quase sonambúlico que faz com que
sejamos “sugados” pelas coisas, por nossos pensamentos e nossas emoções. É
igualmente a isto que serve o “método da desordem”: revolver a máquina que
somos para tomar consciência do vazio que ela esconde. Não é preciso se
surpreender se alguns dos que seguiram Gurdjieff nesta via foram levados a
crises extremamente graves, perturbando seu equilíbrio mental ao ponto de
fugirem ou de se afastarem com terror de experiências semelhantes nas quais
tiveram experiências algo aproximadas com a impressão de viver a morte. Quanto
àqueles que resistiram à prova e persistiram no “trabalho sobre si” junto a
Gurdjieff, estes falam de um incomparável sentimento de segurança e de um novo
sentido dando à sua sua existência.
Parecia que Gurdjieff exercia sobre quem quer
que dele se aproximasse, de maneira quase automática e sem que o desejasse, uma
influência que podia exercer efeitos positivos ou deletérios, segundo o caso. É
fora de dúvida que possuía algumas faculdades supranormais. Ouspensky conta que
recorrendo a uma ciência aprendida no Oriente, da qual no Ocidente não
conhecemos “sequer uma parte insignificante sob o nome de hipnotismo”,
Gurdjieff podia, graças a certas experiências, separar a “essência” da “pessoa”
em um indivíduo dado – fazendo aparecer eventualmente a criança ou o idiota que
se escondia por trás de qualquer indivíduo evoluído ou cultivado ou,
inversamente, uma “essência” muito diferenciada a despeito da existência de
manifestações exteriores.
Entre os testemunhos recolhidos por Pawels, há
um particularmente picante relativo ao poder, atribuído igualmente no Oriente a
certos iogues (e evocado por um autor digno de fé como Sir John Woodroffe), de
“lembrar a fêmea à fêmea”. Aquele que conta a anedota se encontrava em Nova
Iorque, em um restaurante, em companhia de uma jovem escritora muito segura
dela mesma à qual mostrou o “famoso Gurdjieff, sentado em uma mesa vizinha. A
jovem o mirou com um olhar de superioridade fixo, mas pouco tempo depois, ela
se tornou pálida e parecia estar ao ponto de desfalecer. Isto deixou surpreso
seu companheiro, que não conhecia essa grande mestra dela mesma. Mais tarde,
ela lhe confessou isto: “É ignóbil! Eu olhei este homem e ele me surpreendeu.
Ele apenas me observou friamente e, naquele momento, senti-me intimamente com
uma tal precisão que experimentei o orgasmo! ”.
Gurdjieff se contentava com poucas horas de
sono. Chamavam-no “aquele que não dorme”. Ele alternava um modo de vida quase
espartano com banquetes de uma opulência russo-oriental desaparecida há muito
tempo. Em 1934, foi vítima de um acidente automobilístico muito grave: ficou
três dias em coma mas retomou a consciência e parecia ter rejuvenescido, como
se o choque físico, no lugar de lesar seu organismo, o tivesse galvanizado.
Numerosas coisas deste gênero correm por sua conta, nós mesmos as ouvimos
diretamente, pela voz de um de seus próximos que dirigiu no México “grupos de
trabalho” evocadas bem alto. Que seja bem entendido, um processo de mitificação
é inevitável em casos desse gênero, e não é fácil separar a realidade do
imaginário. Gurdjieff não deixou quase nada escrito e o que publicou é de
qualidade suficientemente medíocre, mas é extremamente frequente que aquele que
é “alguém” não tenha nem as qualidades nem a preparação para ser escritor:
ele dá um ensinamento direto e exerce sua influência. Como já dissemos, à parte
a coleção de testemunhos publicados por Pawels sob o título Senhor Gurdjieff,
coube a Ouspensky escrever seus ensinamentos.
Gurdjieff morreu com a idade de oitenta e dois
anos, em plena posse de seus meios e dizendo ironicamente aos discípulos que o
assistiam: “Eu os deixo numa bela enrascada! ”
Ainda hoje, ele não cessa de ser citado e, como
já dissemos, aqui e na Inglaterra, na França, na Africa do Sul, os restos dos
grupos que foram constituídos sob sua influência subsistem.
www.gurdjieff.org para conhecer um pouco mais sobre G. Gurdjieff.