Um tema que deve ser caro à "Ciência Mística" são os mitos fundadores que a humanidade acalenta desde seus mais tenros anos. Em todos os povos, em diversos continentes, da Eurásia à África, da América à Oceânia, um conjunto de idéias arcanas ("arché") faz-se presente nas representações culturais dos indivíduos, perenizadas em suas artes (especialmente na poesia e na prosa) ou em transcrições orais que passam de geração a geração.
Estes antigos mitos, comuns a povos tão díspares, exprimem eventos traumáticos que se sucederam no início da humanidade (como seria o caso do dilúvio) ou impressões místico-religiosas primevas que se fincaram como fundamentos de muitos cultos, alguns deles extintos, outros ainda vivos, sob novas denominações.
Da leitura de parte da produção escrita dos gregos, romanos, babilônios (e demais povos do "Crescente Fértil"), egípcios, hebreus e hindús, depreende-se que há dois tipos de mitos fundadores, segundo a sua abrangência e cinco segundo o número. Estes são mitos privativos da tradição indo-européia-semítica e aqueles últimos possuem menor nível de universalidade, abrangendo diferentes culturas.
Entre os mais importantes mitos fundadores está o do primeiro homem. O Adão bíblico, batizado "Adam Kadmon" pelos cabalistas, o "homem primordial". Outro mito fundador é do pecado original, Eva atraída pela serpente, dando a Adão o fruto da vida. A lenda do paraíso - com todo o seu significado ético - toma feitio distinto nas histórias de Prometeu e Pandora em Hesíodo, na queda queda dos Titãs, a "Titanomaquia" (por analogia, a queda de Lúcifer) e tantas outras idéias-mestras da humanidade. Prometeu, imortalizado em Ésquilo, aliás, é "Ankylométis" em grego, "habilidoso na arte da tramar" e capaz de desafiar Zeus, assim como Eva e a Serpente ludibriaram o Criador.
Por comer do "fruto da razão", Adão e sua descendência passaram a carregar o fardo do "pecado original" e "Do suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, porque dela foste tomado; porquanto és pó, e ao pó tornarás", diz o Gênesis(1). Na Grécia, mais tarde, Hesíodo seria mais condescendente com o homem e mais otimista com o trabalho. O mesmo tema é gravado na mitologia grega, advertindo o poeta a seu irmão: "Ó Perses! Mete isto em teu ânimo: a luta malevolente teu peito do trabalho não afaste para ouvir querelas na Ágora e a elas dar ouvidos" (2).
Um segundo mito de especial significação esotérica é o dilúvio. Ele é bem claro nas tradições babilônicas, hebréias (semíticas em geral), grega e romana. Entre os babilônios, o relato do dilúvio aparece na "Epopéia de Gilgamesh", descoberta em tabuinhas cuneiformes por John Henry Layard, nas ruínas de Nínive. Seu inestimável valor foi reconhecido no encontro de dezembro de 1872 da Sociedade de Arqueologia Bíblica, em que, pela primeira vez, reconheceu-se uma nova descrição do dilúvio (3).
Da antiga literatura suméria (o sumeriano era uma língua, já à época, adstrita aos intelectuais, como o grego antigo e o latim) restaram cinco poemas relativos ao herói Gilgamesh e uma tábua, incompleta, tratava do dilúvio, não fazia parte do ciclo de Gilgamesh, mas foi nele incluído posteriormente. Há na realidade um Noé, nesta tábua, chamado Ziusudra ("ele viu a vida") e ainda um mais arcaico, datando da primeira metade do segundo milênio A.C., no qual o protagonista se chamava "Athrasis".
Com efeito, o Noé Bíblico que constrói sua arca e recolhe os animaizinhos indefesos para procriar-lhes as espécies inspira-se em estórias que circulavam na Babilônia nos anos do exílio Judaico. Por trás de um Deus que cria a humanidade e se arrepende depois, decidindo exterminá-la pela água, está um segredo ainda maior: o milagre do arrependimento e da remissão dos pecados pela água, retomado no batismo cristão. Assim, cessada a intempérie, disse Deus a Noé (Gênesis, capítulo 9, v. 1-3; tradução de João Ferreira de Almeida):
1 Abençoou Deus a Noé e a seus filhos, e disse-lhes: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra.
2 Terão medo e pavor de vós todo animal da terra, toda ave do céu, tudo o que se move sobre a terra e todos os peixes do mar; nas vossas mãos são entregues.
3 Tudo quanto se move e vive vos servirá de mantimento, bem como a erva verde; tudo vos tenho dado (4).
Este não é o momento adequado para abordar o assunto, mas hoje se sabe que boa parte da "Torá" fora escrita na Babilônia. Talvez agrupe estórias esparsas reunidas pelos hebreus desde o cativeiro egípcio, pois muitos episódios do "Velho Testamento" são cópias quase literais de papiros famosos no Delta do Nilo. Outras versões retratam tradições babilônicas absorvidas pelos Hebreus em seus contatos com povos vizinhos. Independente disto, Noé e Adão, o homem primordial, são patrimônio conjunto de hebreus, cristãos, gregos e uma série de povos antigos.
Um outro mito freqüente entre os antigos é o das "Idades do Mundo". Para Hesíodo, em "Os Trabalhos e os Dias" ("Kai Erga Imerá") estas idades correspondiam às cinco raças, a de ouro, a de prata, a de bronze, e a dos Heróis e a de Ferro. A raça de Ferro, assim como a "Kali Yuga" dos vedas e hindús coincide cronologicamente com o tempo comum, ou seja, nossa era. Lamentava Hesíodo que:
"Antes não estivesse eu entre os homens da quinta raça,
mais cedo tivesse morrido ou nascido depois.
Pois agora é a raça de ferro e nunca durante o dia
cessarão de labutar e penar e nem à noite de se
destruir: e árduas angústias os deuses lhes darão.
Entretanto a esses males bens estarão misturados.
Também esta raça de homens mortais Zeus destruirá,
no momento em que nascerem com têmporas encanecidas.
Nem pai a filhos se assemelhará, nem filhos a pai; nem hóspedes a
hospedeiro ou companheiro a companheiro
e nem irmão a irmão caro será, como já haviam sido;
vão desonrar os pais tão logo estes envelhaçam
e vão censurá-los, com duras palavras, insultando-os;
cruéis, sem conhecer o olhar dos deuses e sem poder
retribuir aos velhos pais os alimentos;
[com a lei nas mãos, um do outro saqueará a cidade]
graça alguma haverá a quem jura bem, nem ao justo
nem ao bom; honrar-se-á muito mais ao malfeitor e ao
homem desmedido; com justiça na mão, respeito não
haverá; o covarde ao mais viril lesará com
tortas palavras falando e sobre elas jurará.
A todos os homens miseráveis a inveja acompanhará,
ela, malsonante, melevolente, maliciosa ao olhar.
Então ao Olimpo, da terra de amplos caminhos,
com os belos corpos envoltos em alvos véus,
à tribo dos imortais irão, abandonando os homens,
Respeito e Retribuição; e tristes pesares vão deixar
aos homens mortais. Contra o mal força não haverá!".
NOTAS:
(1) "Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida.
(2) Anônimo. A Epopéia de Gilgamesh. São Paulo. Martins Fontes: 2001.
(3) Hesíodo. Os trabalhos e os dias.São Paulo. Iluminuras: 2002; Hesíodo. Teogonia - a origem dos Deuses. São Paulo: Iluminuras: 2003