TUFAYL, Ibn. O filósofo autodidata. Fundação Editora da UNESP. Coleção Pequenos Frascos, 2005.
PREÂMBULO
Em nome de Deus clemente e misericordioso: que ele cubra com suas bênçãos nosso Senhor Maomé, sua família e companheiros, e lhes conceda a salvação.
Tu me pediste, excelente irmão, sincero e caro – que Deus te dê vida eterna e alegria infinita! – que te revelasse o que pudesse dos segredos da filosofia iluminativa que nos foi comunicado pelo mestre Avicena, príncipe dos filósofos.
Que o saibas: aquele que quer a verdade sem véus deve procurar esses segredos por conta própria e fazer todos os esforços para obtê-los.
Mas teu pedido insuflou-me ardor bastante para fazer-me atingir – Deus seja louvado! – a intuição de um estado extático que não havia experimentado antes, alcançando uma etapa tão extraordinária que nem a língua me todos os recursos do discurso poderiam dar conta dele, porque esse estado não tem relação com a linguagem e é de natureza completamente diferente.
A única relação desse estado com a linguagem é que aquele que alcança uma de suas etapas, em virtude da alegria, do contentamento e da volúpia que sente, não pode calar-se a seu respeito nem guardá-lo para si. Ele é presa de uma emoção, de um júbilo, de uma exuberância, de um regozijo que o levam a comunicar esse estado e a divulgá-lo de uma maneira ou outra.
Se for um homem falto de ciência, ele o fará sem discernimento. Um dentre ele, por exemplo, chegou a dizer: “Que eu seja louvado! Como sou Grande!”. Um outro declarou: “Eu sou a Verdade”. Um outro, por fim: “Aquele que está debaixo desta vestimenta é o próprio Deus!”.
Tendo chegado a esse estado, Al-Ghazali (2 Xeque Abu Hamid) escreveu este verso: “O que ele é, não saberia dizê-lo. Pensa bem dele e não peças para saber o que ele é”. Mas era um espírito afinado pela cultura literária e fortificado pela ciência.
Considera também as palavras de Avempace (3 Ibn Bajja ou Abu Bakr Ibn al Saig) que vêm depois de sua descrição da conjunção ( 4 Conjunção: termo do vocabulário místico que significa a união do intelecto humano com o intelecto divino. É uma das ‘estações’ da progressão mística. Encontraremos esses termos no fim do romance. Na última das ‘sete etapas’ que constituem o desenvolvimento do espírito do herói’.
“Quando se chega a compreender o que quero dizer, vê-se então claramente que nenhum conhecimento pertencente às ciências ordinárias pode ser posto na mesma posição. A compreensão dele é dada numa condição em que nos vemos separados de tudo o que nos precede, munidos de convicções novas que nada têm de material, nobres demais para terem relação com a vida física. Esses estados próprios aos bem-aventurados, libertos da composição que depende da vida natural, são dignos de serem chamados estados divinos. Deus os concede a quem lhe agrada dentre seus servidores”.
Essa condição de que fala Avempace, a ela se chega pela via da ciência especulativa e da meditação, Talvez ele mesmo tenha alcançado esse ponto.
Mas a condição de que falei antes é diferente. Ela é a mesma no sentido de que aí não se revela nada de distinto da evocada por Avempace, mas difere dele por uma clareza muito maior, e porque a intuição aí se produz com uma certa qualidade que chamamos metaforicamente de intensidade, na fatal de encontrar uma linguagem ordinária ou na terminologia técnica um termos próprio que exprima a qualidade de uma tal intuição. Esse estado, cujo sabor tem pedido me levou a sentir, é um daqueles que Avicena assinalou ao dizer:
“Em seguida, quando a vontade e a preparação o conduziram até uma certa etapa, ele capta breves e suaves aparições da verdade, cuja aurora entrevê, semelhantes a clarões que apenas veria brilhar e desaparecer. Se perseverar nessa preparação, essas iluminações súbitas se multiplicam e ele torna-se perito em provocá-las, a ponto de lhe chegarem sem preparação. Em todas as coisas que percebe, só considera a relação delas com a santidade sublime, enquanto conserva uma certa consciência de si mesmo. Em seguida, chega-lhe uma nova iluminação súbita, e pouco falta para que veja a verdade em todas as coisas. Por fim, a preparação o conduz a um ponto em que seu estado momentâneo se transforma em quietude perfeita. O que era furtivo torna-se habitual, o que era luz frouxa torna-se chama brilhante; chega a um conhecimento estável que se assemelha a uma sociedade contínua”.
Avicena descreve assim as etapas sucessivas, até que cheguem à obtenção, um estado no qual
“seu ser interior torna-se um espelho polido orientado para a verdade. Então os gozos do alto se derramam abundantemente sobre ele. Regozija-se em sua alma com os traços da verdade que nela capta. Nessa situação, ele está em relação, por um lado com a verdade, por outro com sua alma, e flutua de uma à outra. Por fim, perde consciência de si mesmo. Só considera a santidade sublime, ou então, se considera sua alma, é somente na medida em que ela contempla. Nesse momento ocorre necessariamente a unificação completa”.
Avicena quer que o sabor possa ser obtido apenas por esses estados que descreveu, e não pela via da percepção especulativa, que é obtida por raciocínios, pondo premissas e tirando conclusões.
Se quiseres uma comparação que te faça claramente captar a diferença entre a percepção assim compreendida e a percepção tal como se a entende habitualmente, imagina um cego de nascença, dotado entretanto de uma boa natureza, inteligência viva e firma, memória seguro, espírito reto. Ele teria crescido desde o nascimento numa cidade onde não teria parado de aprender, por meio dos sentidos que lhe restam, a conhecer individualmente os habitantes, numerosas espécies de seres vivos ou inanimados, a conhecer as ruas da cidade, as ruelas, as casas, os mercados, de modo que possa percorrer a cidade sem guia e reconhecer imediatamente todos aqueles que encontra. Só não conheceria as cores, a não ser pelas explicações dos nomes que têm e por certas definições que as designam.
Supõe que neste ponto seus olhos se abra, que comece a ver, que percorra toda a cidade e que lhe dê a volta: não achará nenhum objeto diferente da idéia que fazia dele, não encontrará nada que não reconheça, encontrará as cores segundo as descrições que lhe tinham sido dadas, e nisso tudo não haverá nada de novo para ele, a não ser duas coisas importantes, uma como conseqüência da outra: uma claridade, um brilho maior e uma grande volúpia.
O estado dos homens de pensamento que não chegaram à fase da familiaridade com Deus é o primeiro estado do cego. As cores que conhece nesse estado pelas explicações de seus nomes são as coisas que Avempace diz que são sublimes demais para serem relacionadas com a vida física, e que Deus concede a quem lhe agrada dentre seus servidores. O estado dos pensadores que chegaram à fase da familiaridade, e aquém Deus doou essa coisa que eu disse que não era chamada intensidade senão metaforicamente, é o segundo estado desse cego. Mas encontra-se raramente um homem que, quando tem os olhos abertos, goze de uma vista sempre penetrante sem ter necessidade de olhar.
Por ‘percepção dos pensadores’ não entendo aqui – Deus te honre com sua familaridade! – o que eles percebem do mundo físico, assim como não entendo por ‘percepção dos familiares de Deus’ o que eles percebem de suprafísico, pois esse dois gêneros de objetos perceptíveis soa muito diferentes entre si e não se confundem um com o outro. O que nós entendemos por ‘percepção dos pensadores’ é o que eles percebem de suprafísico: é o que percebia Avempace. Ora, a condição dessa percepção especulativa é que ela seja verdadeira e fundamentada. Em conseqüência, ela está em conformidade com a percepção própria dos familiares de Deus, que conhecem as mesmas coisas, mas com mais clareza e com extrema volúpia.
Avempace denigre essa volúpia de que falam os sufis (5 Sufis: praticante de uma seita mística do Islã, que visa ao puro amor de Deus sem medo do inferno nem esperança num paraíso). Ele a relaciona com a faculdade imaginativa e se empenha em expor as condições que provocam esse estado de ventura. Mas é preciso lhe responder aqui: não declares como doce o sabor de uma coisa que não experimentaste e não pises a cabeça dos homens de bem. Por ele não manteve esse empenho. É provável que tenha sido impedido pela falta de tempo de que fala e pelo transtorno causado por sua viagem a Ora.; ou viu também que, se descrevesse esse estado, seria levado a condenar sua própria conduta e o encorajamento que havia dado à aquisição, à acumulação de grandes riquezas e ao emprego de meios diversos para consegui-las.
Porém afastei-me mais do que o necessário do assunto que me convidaste a tratar.
Resulta claramente do que precede que teu pedido não pode visar senão a um destes dois fins:
Ou bem desejas conhecer o que vêem os homens que gozam da intuição do gosto, e que chegaram à fase da familiaridade com Deus – mas é uma coisa de que não se pode dar idéia adequada num livro e, desde que se tente, desde que se procure exprimi-la com palavras ou escritos, sua natureza se altera e ela cai n outro gênero: o gênero especulativo. Pois ao se revestir de consoantes e de vogais e ao se aproximar do mundo sensível, ela perde sua identidade originária, e as maneiras de interpretá-la diferem grandemente: alguns se desviam muito do reto caminho, outros parecem ter se desviado quando não é absolutamente o caso. Isso provém de ser uma coisa não delimitada numa extensão exterior, e que envolve ser envolvida.
Ou bem, esse é o segundo fim, pois teu pedido, dizia eu, não podia visar senão a um outro, desejas conhecer essa coisa segundo o método dos filósofos; e aí – Deus te honre com sua familiaridade! – é uma coisa própria a ser consignada em livros e expressa em palavras. Mas ela é mais rara que o enxofre vermelho, sobretudo neste mundo onde vivemos, pois é aí tão estranha, que só um outro homem recolhe dela algumas parcelas. E mais, aqueles que dela recolheram um pouco só falaram por enigmas, uma vez que a religião revelada proíbe que nos entreguemos a essa coisa e nos põe em alerta contra ela.
Não acredites que a filosofia que nos chegou nos escritos de Aristóteles, de Al-Farabi e no Livro da Cura de Avicena satisfaça teu desejo, nem que qualquer dos andaluzes tenha escrito algo que baste nesse domínio. Pois os homens de espírito superior que vivem na Andaluzia antes da difusão da lógica e da filosofia nesse país consagraram a vida às ciências matemáticas. Nelas atingiram um alto grau de perfeição, mas nada mais fizeram. Uma geração de homens os seguiu, e superou-os em certos conhecimentos em lógica, eles ocuparam-se dessa ciência, mas ela não os conduziu à verdadeira perfeição. Um deles disse: ‘È para mim aflitivo que as ciências sejam reduzidas a duas: uma verdadeira impossível de adquirir, e uma inútil, cuja aquisição não serve para nada’.
Veio em seguida uma outra geração de homens mais hábeis na especulação, que se aproximaram mais da verdade. Nenhum deles possuiu espírito mais penetrante, raciocínio mais seguro, vista mais justa que Avempace, mas os negócios do mundo o absorvera de tal modo que a morte o levou antes que tivesse tempo de trazer à luz do dia os tesouros da sua ciência e revelado os segredos de sua sabedoria. A maioria de suas obras não tem acabamento e ficou incompleta, como o livro sobre a alma, o Regime do Solitário, os escritos sobre lógica e sobre física. Quanto a seus escritos acabados, são compêndios e pequenos tratados mal ajambrados. Ele mesmo o confessa, ao declarar que seu pequeno tratado ‘Da Conjunção’ não dá uma idéia clara da tese que aí se propôs a demonstrar, senão à custa de muito esforço e cansaço, que o ordenamento da exposição em certos lugares, não tem um método perfeito e que ele os remanejaria de bom grado se tivesse tempo para isso.
Eis o que aprendi no que concerne à ciência desse homem, pois não o conheci pessoalmente. Quanto a seus contemporâneos, que têm um lugar no mesmo plano que ele, não lhes vi as obras. Aqueles que os seguiram por fim, nossos próprios contemporâneos, estão ainda em pleno desenvolvimento, ou então pararam antes de atingir a perfeição, ou não nos manifestaram seu verdadeiro valor.
Dos livros de Al-Farabi que chegaram até nós, a maioria é concernente à lógica. aqueles que nos chegaram sobre a filosofia estão cheios de incertezas. Em seu livro ‘Da boa seita’ ele afirma que as almas dos maus permanecem depois da morte em tormentos eternos, ao passo que declara na sua Política que elas se dissolvem e retornam ao nada e que só sobrevivem as almas virtuosas e perfeitas. No Comentário da Ética, fazendo uma descrição da felicidade humana, ele a localiza unicamente na vida deste mundo. E acrescenta, logo a seguir: ‘Tudo que se conta fora disso não passa de extravagância e de histórias de velhas’. Assim, leva os homens a perderem a esperança na misericórdia divina, pondo no mesmo plano os bons e os maus, já que, segundo ele, o nada a todos espera.
Equívoco! Passo em falso que não tem perdão – além das más doutrinas que professa sobre a inspiração profética relacionando-a à faculdade imaginativa e escolhendo contra ela a filosofia – e todas essas outras idéias que não é inútil lembrar.
Quanto aos escritos de Aristóteles, Avicena se encararrega de explicar-lhes o conteúdo.e Ele segue-lhe a doutrina e pratica seu método filosófico no livro Da Cura. Declara no início desse livro que, no seu entender, a verdade não se encontra nas doutrinas que aí expõe, que ele se limitou a reproduzir o sistema dos peripatéticos e que aquele que quer a verdade pura deve procurá-la em seu livro Da filosofia iluminativa.
Se nos dermos ao trabalho de ler a Cura e as obras de Aristóteles, vermos que estão de acordo na maioria das questões, embora o Livro da Cura contenha certas coisas que não nos chegaram sob o nome de Aristóteles. Mas, se tomarmos todas as proposições dos escritos de Aristóteles e do Livro da Cura em seu sentido exotérico, sem procurar seu sentido profundo e esotérico, Avicena nos adverte, nessa mesma cura, que não se alcançará desse modo a perfeição.
Al-Ghazali, pór seu lado, quando se dirige ao grande público, faz associações em tal lugar, desfaz em outro, condena certas opiniões e professa-as mais tarde. Dentre as acusações de impiedade que faz contra os filósofos em sua Ruína dos Filósofos, ele os condena por negaram a ressurreição dos corpos e por afirmarem que recompensa e castigo concernem exclusivamente às almas. diz, no entanto, no início de A Balança das Ações que essa opinião é formalmente professada por doutores sufis. Por fim, declara em sua Libertação do Erro e exposição dos estados extáticos que só se deteve nela após um longo exame. Há em seus livros muitas contradições desse gênero que podem ser observadas por qualquer um que os leia e examine com cuidado.
Ele pediu desculpas por isso no final de A Balança das Ações dizendo que há três espécies de opinão: uma, que se professa para conformar à opinião do vulgo; em seguida uma opinião cômoda para responder a qualquer um que interrogue e peça para ser dirigido; e por fim uma opinião que se guarda para si mesmo e que apenas se mostra a quem compartilhar a mesma convicção. Ele acrescenta: ‘ estas palavras só tiverem como efeito fazer-te duvidar daquilo em que acreditas por uma tradição herdade, já seria de bastante proveito; pois, quem não duvida, não examina; quem não examina, não percebe; e quem não percebe, permanece na cegueira e na confusão’.
Em seguida, cita este verso como um provérbio: ‘Aceita o que vês e abandona o que ouviste dizer. Quando o Sol se levanta, ele te prepara para que dispenses Saturno’.
Essa é sua doutrina. A maior parte consiste em enigmas, alusões vagas que podem ser proveitosas para quem as examine primeiramente com o olhar da alma e que, em seguida, as ouça explicar por uma voz interior, ou então a inteligência superior, a quem a menor indicação basta. No livro Das Pedras Preciosas