Felicidade
e Qualidade de Vida
Sentidos
da Felicidade
Pouquíssimas
palavras são tão mal compreendidas quanto “felicidade”.
Trocam-se os fins pelos meios e julga-se feliz aquele que satisfaz
seus desejos mais imediatos, usufruindo do que imagina serem os
“prazeres da vida”. Mas o alcance da felicidade vai muito além
da compra de uma nova TV de plasma ou de um carro novo. Quantos de
nós conhecemos em nosso círculo de parentes e amigos, pessoas bem
sucedidas, financeiramente estáveis e inseridas em estruturas
familiares ou em redes sociais que correspondem ao nosso estereótipo
de felicidade? Mas serão elas realmente felizes? Ninguém sabe
dizê-lo, pois a felicidade, antes de tudo é uma disposição
interior de espírito. Em segundo lugar, há indícios de que este
estado não está relacionado a fatores como posse, poder, atividade
desenfreada (como a obsessão por exercícios físicos, aventuras,
viagens sem fim e êxito nos negócios) ou qualquer fator exterior.
Na sociedade contemporânea, o forte incentivo à competição e ao
ganho monetário é outro empecilho de monta à conquista da
verdadeira felicidade, e fonte primordial da angústia que afeta o
homem.
Mesmo
estes prosaicos filósofos da natureza, os economistas, têm se
envolvido com o espinhoso desafio de contemplar a felicidade em seus
modelos. Em 1972, um país da Ásia chamado Butão foi pioneiro ao
calcular um índice de “Felicidade Interna Bruta” (FIB) que - ao
contrário do “Produto Interno Bruto” - incorpora algumas
dimensões do ser humano ignoradas solenemente nas medidas
“físicas” do bem estar (1). Seu objetivo era criar um indicador
adaptado à cultura do país, capaz de evidenciar que ele não era
tão pobre quanto se pensava (pois o cômputo apenas da produção de
bens e serviços não dava conta de toda a sua riqueza espiritual e
cultural).
De
fato, muito da percepção limitada que temos da felicidade decorre
da ignorância de suas origens etimológicas. Nessa palavra o morfema
“feliz” provém de “Fe”, uma raiz latina derivada do
indo-europeu “Dhe” que, por sua vez quer dizer “mamar”
ou “sugar”. Entre os antigos gregos, o vocábulo “eudaimonia”
ou “que tem um poder divino (daimon) bem disposto (eu)”
era o que mais se aproximava do que atualmente assinalamos como
felicidade, sendo tida como um favor divino e relacionada à
prosperidade. Como não pretendemos crer que nossos ancestrais nos
séculos IV e V A.C. raciocinavam à maneira reducionista e grosseira
dos contemporâneos, optamos por assumir que a primeira interpretação
(da boa disposição do poder divino no homem) melhor traduz a
acepção clássica de felicidade.
Ademais,
no seio da Grécia havia vozes discordantes que relativizavam a
segunda opinião, como Eurípedes que vaticinou em sua célebre
“Medeia”: “Nenhum homem é feliz (eudaimon) (2). Se a
prosperidade (olbos) vem até ele, ele pode ter mais sorte (eutyches)
que outros homens, mas feliz, ele não é”. Na Roma do Império,
por sua vez, “Felicîtas” (felicidade) era a
personificação de uma antiga deusa, usualmente impressa em moedas e
que celebrava a boa sorte e o sucesso. Não sem generosa dose de boa
vontade, entendemos que aquela deidade simbolizava o fato de que
adquirir um bom resultado (ou ter êxito) pressupõe um ponto de
origem (o estado atual) e destino (o
estado
futuro). Mas para triunfar é preciso percorrer um caminho até a
meta. É preciso esforço para ser feliz. Mesmo sob pena de nos
atermos quesito tão “materialista” (o êxito ou o sucesso), esta
idéia do esforço nos parece uma das mais profícuas chaves dos
mistérios da felicidad (3).
Com
efeito, filósofos romanos como Sêneca sentenciavam que “(...)
todos querem viver felizes, mas não têm a capacidade de ver
perfeitamente o que torna a vida feliz. Realmente não é fácil
atingir a felicidade, porque, se alguém desviado do reto
caminho se precipita para alcançá-la, fica sempre mais
afastado da realidade” (4). A felicidade, portanto,
comportava mais que retenção de dinheiro ou o dar livre curso às
paixões, a simples “alegria” ou o contentamento transitório e
não permanente. Era uma inclinação do homem, pois “(...) uma
alma reta nunca se transforma nem é odiosa a si mesma,
em nada se afasta do melhor modo de viver; o prazer, porém,
extingue-se justamente quanto mais deleita, o seu campo não é muito
amplo e, por isso, logo sacia, causa tédio e definha depois do
primeiro impulso”.
Mais
profunda e visceral ainda é a interpretação da felicidade entre as
milenares escolas filosóficas e tradições espirituais hindus. Com
todas as dificuldades em verter o idioma sânscrito para as línguas
ocidentais, o que mais se aproxima da felicidade real e que
pode ser experimentada pelo Ser humano é Sat-Chit-Ananda, a
tríade existência, sabedoria e bem-aventurança. Ananda ou
beatitude (a condição de fato feliz da existência) vem a ser a
suprema autorrealização do homem e sua fusão no oceano do divino.
Na
prática, por assim dizer, tal experiência tem a ver com aquelas
raras circunstâncias em que o homem encontra o divino - não como
algo externo a si mesmo - ; mas como uma realidade interna,
entregando-se sem limites à contemplação do Todo, Uno ou,
simplesmente, Deus. Este momento especial não é privilégio de um
punhado de homens e mulheres abnegados. Pode ser experimentado por
todos e muitas vezes não nos damos conta daqueles breves instantes
em que a intuição nos impele a percepções mais refinadas do
ambiente e de nossa relação conosco mesmos e o Universo (5).
Para
certos grupos islâmicos como os sufis ou os praticantes Zen budistas
um dos atalhos para a “iluminação” (um dos sinônimos de
autorrealização) reside nos efeitos instantâneos de alguns
acontecimentos fortuitos sobre o sujeito que os experiência. Uma
abelha pousando sobre uma pequena flor a desabrochar, gotas de
orvalho na relva ou o coaxar de um sapo são suficientes para
provocar-lhe uma clara antevisão da beleza do mundo. È o mesmo que
dizer - como o fazem certos místicos - que “conhecemos a Deus por
seus sinais”(6) e a sintonia com a natureza é um caminho simples
e comumente menosprezado para a felicidade suprema.
Outrossim,
existem outros campos em que a sensibilidade pode ser apurada ,
abrindo-se mais uma porta para a autorrealização. Manifestações
artísticas como a dança, a poesia, a música e outras também
contribuem para assegurar-nos uma vida plena de significado, como bem
lembrou uma amiga que, gentilmente, revisou meu texto original. E ela
está coberta de razão. O homem que ao longo de seu extenso período
de vida (pois entre milhares de espécies a nossa é uma das mais
longevas) priva-se de arte é um indivíduo truncado, um pobre
coitado cuja alma pode ter se atrofiado
definitiva e irremediavelmente.
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*Agradeço
a colaboração dos amigos Sylvio de Queiroz Mattoso, Fernanda Duayer
Picardi e Nilson Galvão que, gentilmente, revisaram e apresentaram
sugestões ao texto. Não suponham pela leitura do ensaio que eu mesmo
tenha alcançado o estado de espírito sobre o qual me debruço aqui.
Entre falar da felicidade e ser feliz há um longo e penoso caminho.
1
Como o PIB, que é simplesmente o somatório dos preços de todos os
bens e serviços vendidos a preços de mercado em determinado período
do tempo.
2
LAURIOLA, Rosana. De eudaimonia à felicidade. Visão geral do
conceito de felicidade na antiga cultura grega, com alguns vislumbres
dos tempos modernos. Revista Espaço Acadêmica no 59,
abril de 2006.
3
O homem se fosse sábio ergueria templos ao esforço. Mas aonde quer
que ele seja valorizado no mundo, jamais o é como uma das mais
importantes forças cósmicas nos planos material ou espiritual,
porém amesquinhado a tal ponto que se viu banido de toda reflexão
filosófica de fôlego.
4
SENECA, Lucius Anneus. Da vida feliz. São Paulo, Martins
Fontes, 2001.
5
No sufismo ou mística islâmica este modo de ver as coisas é
pronunciado. “O coração do sufismo "estánum hadith" (sentença)
de Mohamed: ‘Adora a Deus como se o visses, pois mesmo que tu não
O vejas, Ele na verdade sempre te vê’. Os fukará procuram assim
agir sempre como se estivessem na presença de Deus. Aspiram à
“libertação” em vida de todos os entraves colocados pelo
lamento passional da alma (nafs) e das limitações e temores
engendrados pelo mundo”. AZEVEDO (1996).
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