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terça-feira, janeiro 24, 2012

A Nova Classe nos Dias de Hoje (América Latina) – Ensinamentos de Milovan Djilas

Milovan Djias. Preso em 1956 após apoiar a Revolução anticomunista Húngara
Nos anos 50 um importante burocrata comunista da antiga Iuguslávia do Marechal Tito refugiou-se no Ocidente: Milovan Djilas. O Camarada Djilas não era um aparelhista qualquer do Partido, mas um homem que circulava nas mais altas esferas de poder em seu país e no mundo comunista. Com boa formação clássica e “marxista-leninista”, ao radicar-se no Ocidente escreveu um livro indispensável ao estudioso do fenômeno no “comunismo real” (não o comunismo ideal, o Èden, a Avalon idílica dos nossos matreiros e burros esquerdistas contemporâneos).

Editado pela Fred and Praeger, New York (minha sétima edição é de 1957), “The New Class – an analysis of he communist system” ao lado de “Eles” ( estarrecedora descrição em forma de entrevistas conduzidas por Tereza Toranska que transcreve a crueza com que ex-comunistas polonoses reviam seu pesado) a “Nova Classe” tem a honrosa distinção de pertencer a um seleto rol de obras pioneiras no campo dos “estudos do comunismo”, ponto de partida para o estabelecimento de uma futura academia americana de sovietologia e comunismo que no passado ostentou exponentes como  Zbigniew Kazimierz Brzezinski, um dos mentores políticos de Jimmy Carter.

Por questão de método é aconselhável deixar de lado as entranhas totalitárias do “marxismo” ou “marxismo-leninismo”, aspectos da história da URSS e embates teóricos (muitas vezes com resultados “práticos” como o fuzilamente de um interculator “inapropriado” de "direita" ou "esquerda" os dois antípodas que desafiavam o poder absoluto de Stálin). Focalizamo-nos, portanto, no ponto nevrálgico da original avaliação de Djilas: as diferenças entre a revolução na Rússia e eventos similares, as características específicas da “Nova Classe” (que a singularizam como algo substancialmente diferente de todas as demais), suas relações com os meios de produção (o que, em conformidade com o próprio jargão marxista, permite sua classificação como 'classe'), sua relação com o Partido, o papel do “líder de classe” em seu estado embrionário (Na URSS, Joseph Stálin) e os dispositivos de que lança mão (a "Classe") para perpetuar-se no poder enquanto classe dominante.

Como salienta Djilas, “Esta nova classe, a burocracia, ou mais acuradamente, a burocracia política, tem todas as características das anteriores assim como novas características que lhe são próprias. Sua origem tem peculiaridades especiais também, ainda que na essência fosse similar à de outras classes”. pg. 38

Sem correr o risco de aplicar a conceituação e metodologia de Djilas a outras conformações comunistas ou socialistas pró-comunistas da atualidade (não falamos de Cuba ou Coréia do Norte, mas de países de orientação socialista como Venezuela, Brasil, Bolívia, Argentina, Equador e outros) é digna de nota a voracidade com que os militantes dos partidos de esquerda, ao agarrarem com unhas e dentes nacos do aparato estatal, nele se grudam e mudam suas percepções de vida, gostos, opções estéticas, narcotizando-se com a “euforia na infelicidade” (para usar uma frase de bom tom do frankfurtiano Marcuse).

Esta horda de militantes “pé de chinelo”, com formação precária e níveis de politização grotescos adquiridos na "luta" (sindicatos, cooperativas, partidos, ONGS) ao se alojarem em seus cargos de confiança, contratos especiais por regime administrativo, contratos de trabalho formais assinados com empresas terceirizadas e outros “meios flexíveis” para vincularem-se à grande vaca estatal, passam a ganhar vistosos salários – bem acima da média – dos quais extraem os fundos para ingressarem no mundo maravilhoso do consumo e da “elegância de classe média”.

Em todos os países da América Latina dominados pelo programa da esquerda – notadamente no Brasil, Venezuela e Bolívia – a Nova Classe se estabeleceu, a partir de um processo lento de “guerra ideológica de trincheiras” na sociedade civil. Finalizada esta fase, a classe em sua fase embrionária, passou a dedicar-se à disputa intestina contra seus concorrentes internos, ingressando na etapa das purgas (as exclusões, "autocríticas", expulsões e anulações de biografias, expedientes corriqueiros na ditadura stalinista), prelúdio de sua consolidação enquanto classe social consciente de sua missão como "vanguarda revolucionária" na "construção do socialismo". Este será o assunto de nossos próximos artigos.




quarta-feira, janeiro 11, 2012

O Traço Principal de Caráter segundo as Escolas Esotéricas - Thomas De Hartmann


Thomas De Hartmann


Um interessante trecho do livro do músico e discípulo de Gurdjieff, Thomas De Hartmann, "Nossa Vida com Gurdjieff":



“Nas escolas esotéricas, certos homens de alto nível de compreensão estudam, em sua totalidade, a natureza do homem.
Seus alunos querem desenvolver o próprio Ser. Falam sincera e abertamente de sua busca interior, de sua meta, como alcançá-la e como aproximar-se dela, e dos traços de caráter que lhe obstruem o caminho. Para ir ao encontro de uma confissão assim, deve-se tomar uma decisão importante, aceitar ver seus defeitos reais e falar deles. Gurdjieff ensinava ser absolutamente essencial conhecer o traço principal de seu caráter, aquele em torno do qual (como de um eixo) giram todas as nossas estúpidas e cômicas fraquezas. Desde os primeiros dias, Gurdjieff nos falava desse traço principal. Vê-lo e estar plenamente consciente dele é às vezes muito doloroso, algumas vezes impossível de suportar. Nas escolas esotéricas, como já disse, só se releva a um aluno sua fraqueza principal com muitas precauções, para evitar que se crie um estado de desespero capaz de pôr fim a sua vida. Um vínculo espiritual com um mestre pode evitar essa tragédia.
As Sagradas Escrituras falam do momento da descoberta do defeito principal quando dizem que, ao ser esbofeteado na face direita, você deve oferecer a face esquerda. O sofrimento que esse descoberta provoca assemelha-se à ofensa de uma bofetada. Um homem deve achar em si mesmo força para evitar esse sofrimento, mas ter a coragem de oferecer a outra face, quer dizer, ouvir e aceitar ainda mais a verdade sobre si mesmo”

terça-feira, janeiro 10, 2012

John Holman. O Retorno da Filosofia Perene - A Doutrina Secreta para os Dias de Hoje


A safra literária recente que atende aos anseios do buscador sincero não é generosa no Brasil. Acostumado a receber material de má qualidade e segunda mão, o brasileiro é presa de um mercado editorial canhestro que lucra com publicações de auto-ajuda ou esoterismo à la “Nova Era”. Há honrosas exceções, como a Madras Editora, a Editora Teosófica e a Pensamento, que teimam em oferecer ao leitor material de melhor qualidade. É o caso do livro “O Retorno da Filosofia Perene - A doutrina secreta para os dias de Hoje”, publicado pela Pensamento em 2011.
 Se no Brasil há décadas circula volumoso manancial de informação teosófica (na linha de Blavatsky e seus seguidores), o estudante de língua portuguesa dificilmente encontrará em vernáculo algo pertencente ao campo da “Filosofia Perene”, um ramo de estudos das tradições religiosas que remonta aos trabalhos pioneiros do francês Réné Guénon. Entre o que podemos conceber como um texto introdutório ao assunto (ou um pequeno, ou quase, manual para o semi-leigo), a obra de John Holman é única, o que é auspicioso para quem deseja superar a espiritualidade superficial e os clichês impostos pela mídia e uma indústria editorial que atendem aos interesses escusos daqueles que delimitam o que deve ou não ser lido.

Prova inconteste de que há uma conspiração de silêncio em torno do Tradicionalismo e da Filosofia Perene é a completa ausência nas livrarias, nomeadamente nesta terra de ninguém, o Brasil, de autores como Réné Guénon, Frithjof Schuon, Julius Evola como tantos outros. Miséria semelhante atinge gigantes da envergadura de Helena Petrovna Blavatsky – cujas obras escolhidas não existem em português; Mario Roso de Luna (o genial polígrafo espanhol) isto, sem falar, em escritos que coloquem em cheque mentiras históricas e falsos enredos políticos cuidadosamente inoculadas por grupos de pressão nas mentes brasileiras.

Voltando a Holman, seu objetivo é apresentar um panorama da visão de mundo esotérica ocidental, com foco em seus “aspectos psico-espirituais e cosmológicos”, com altas doses de sincretismo. O primeiro ponto que incomoda o observador perspicaz é o fato do título não corresponder ao peso dado a diversas questões, sua priorização e ordem de exposição. Discute-se, “en passant”, escolas e autores que detêm parentesco direto, ou não, com a “filosofia perene”, ao invés de, simplesmente concentrar-se em seus principais expoentes, o que, por si, pagaria preço de venda do livro e agradaria a este pouco exigente leitor. Se nos esquecermos deste não tão desprezível senão, podemos saltar todas as páginas dedicadas à teosofia (à moda de HPB e da Sociedade Teosófica), neoplatonismo, cabala e passos da iniciação, entre outras, atendo-nos, por conseguinte à porção escrita que obedece estritamente ao escopo sugerido na capa.

Isto significa procedermos a um recorte compreendo o intervalo entre as páginas 16 e 54, que contêm rudimentos do ensinamento “perene” úteis ao neófito, na falta do original. Tais prolegômenos compreendem a adequada colocação histórica do problema, marcos “metodológicos” para  a análise “acadêmica” dos problemas colocados pelo esoterismo ocidental e noções de tradição, tradicionalismo e seus elementos principais. Além disso, com certo proveito para o estudante, a revisão de elementos-chave da contribuição de René Guénon nos soa proveitosa, ainda que a tradução, aqui e ali, se mostre sinuosa.

Guénon e sua mesa de trabalho no Cairo
O que é “philosophia perennis”? A cunhagem do termo tem sido geralmente atribuída a Gottfried Wilhelm Leibnitz em uma tentativa de analisar a “verdade e a falsidade de todas as filosofias antigas e modernas” o que lhe levaria a extrair “o ouro da escória, o diamante de sua mina, a luz das sombras”. Ele próprio sacou o termo da obra “De Perenni Philosophia (1540)” do teólogo do Século XVI Agostinho Steuco, bibliotecário do Vaticano. Para este, a “filosofia perene” tinha a ver como uma “verdade absoluta originalmente revelada”, uma “prisca teologia”, a “iluminação que emana da “Mens Divina”. Outros, fazem-na remontar a Marco Túlio Cícero, que já se referia a uma religião-Sabedoria original e universal, “Theosofia” (tal como empregada por Amônio Saccas e continuadores modernos como Helena Petrovna Blavatstky e, em tempos recentíssimos, Aldous Huxley).

Traçada a origem do termo, há que conferir-lhe correto tratamento metodológico. Afinal, nas últimas décadas do século XX o esoterismo penetrou, nem tão “a forceps” nas universidades, ainda que como “(...) uma linha de pensamento histórica, algo que poderíamos chamar de tradição ‘subterrânea’ do pensamento ocidental (...) . Para tratar este “pensamento subterrâneo”, a “(...) abordagem geralmente promovida (quando não prescrita) é a ‘agnóstico-empírica’. Como “abordagem agnóstico-empírica” se quer dizer que, o “(...) o que é observável para todos nós (com algum esforço e com a mente humana comum) são as concepções dos esoteristas, não de que essas concepções são ou podem ser (da Realidade Divina). Essas concepções, à medida que as formos abordando, serão apresentadas de maneira ‘neutra’ (isto é, sem que haja manifestação de uma opinião acerca de sua veracidade), e este estudioso do esoterismo ocidental não é – que fique claro desde já – operacionalmente um esoterista, mas sim (...) um ‘esoterólogo’.”.

Trocando em miúdos, um esotórologo é alguém que admite de forma “neutra” as concepções dos praticantes de esoterismo, abstraindo-se seus fatores divinos, cuja percepção atina ao esoterista, a (...) a pessoa cuja experiência decorre de trilhar o Caminho com tudo que isso implica, inclusive o desejo de renascimento espiritual, em primeiro lugar”. O enfoque “agnóstico-empírico”, sem bem entendi, pode ter suas lacunas preenchida  por um esforço “etnometodológico” ou “gnóstico”. Assim, “Se desejarmos realmente entender o esoterismo, a única abordagem é a de um ‘insider’, ou seja, de alguém que conhece alguma coisa por dentro”, o que não descarta uma abordagem empírico-histórica usada por esoteristas-historiadores como G.R.S. Mead e Manly P. Hall, mas o mais importante a reter é que a “(...) a prática teúrgica antes da atividade erudita. Podemos ter tanto esooteristas quando esoterólogos, porém o que tem importância crucial é que não precisamos ser esoterólogos para ser esoteristas”.

O autor ao menos é realista acerca das limitações do seu próprio procedimento como esoterólogo, ao reconhecer que “(...) o estudo de textos como atividade de apoio apenas, com isso, implicando que, por mais que possa revelar acerca de um domínio empírico que chamamos de 'pensamento esotérico ocidental', a pesquisa acadêmica comum sempre continuará, por sua natureza limitada (sendo não procedimental), girando em órbita do verdadeiro material”.

Após seus comentários às novas metodologias empregadas para a compreensão do esoterismo, são repassadas antigas tradições que formaram sua matriz no Ocidente (o gnosticismo, o neoplatonismo e o hermetismo), até as leituras de René Guénon no Século XX, o fundador, por assim dizer, da escola “tradicionalista” da “Sophia Perennis”, espécie de conhecimento superior ao qual se poderia acessar por meio da “intuição intelectual”. Para Guénon, esta “Sabedoria Primordial” expressava-se em símbolos comuns às principais religiões do mundo, tendo como instrumento “par excellence” a literatura sapiente de cada um deles. Para descobrir seu significado, é preciso recorrer à gnose, o que permite que se fale um cristianismo esotérico, hinduísmo esotérico ou simples praticantes do esoterismo que sustentam sua própria religião.
Guénon e Schuon. Cairo

Não se trata apenas de uma “tradição esotérica ocidental” segundo Guénon, mas de uma “Tradição” que se origina no passado e tem continuidade no futuro, no Sempreterno. Desse modo, “(...) nossa cultura ocidental moderna (pós-medieval) não é Tradicional e, poderíamos inclusive reconhecer, é até antitradicional, diferindo de praticamente todas as demais culturas anteriores do planeta. Portanto, a modernidade assistiu a 'degeneração' (...)) da civilização humana numa era de Trevas, onde a luz da Tradição se extinguiu ou, na melhor das hipóteses, só brilha debilmente”.
Mas o que difere o “tradicional” do “antitradicional”? Resumidamente, princípios como:

a) Quantidade e Qualidade, o homem olhando “horizontalmente para fora”, a “(...) dimensão quantitativa, empírica, que se opõe à dimensão metafísica (quantidade como raciocínio discursivo e a qualidade se correlacionaria ao conhecimento);

b) o Absoluto, o Uno, Involução e Evolução: o Absoluto por trás do Uno, que se relaciona a um princípio por trás da natureza logóica, Uno este ao qual “do terceiro aspecto como o princípio da Matéria, o segundo aspecto como princípio da Consciência e o primeiro aspecto como o princípio do Espírito”;

c) Sempreternidade e Tempo: “Aquele que está por trás de nosso sistema cósmico pensa, todas as coisas da nossa realidade sensível se manifestam”. Neste ponto, é fundamental ter em conta que “eternidade significa duração infinita, referindo-se ao tempo “exotérico”. Sempreternidade, outro conceito decisivo, refere-se ao 'sempre agora' (Coomaraswamy a chamava de 'agora sempre') ou o momento esotérico dentro de cada momento do tempo exotérico. Portanto, o Eu supremo do homem, o espírito, reside em Deus e, portanto, o tempo esotérico. Em termos mais amplos pode-se então distinguir três tipos de tempo: 1) o tempo que o personagem mede; 2) o sempreterno e o 3) o “tempo da consciência”. Assim “(...) a evolução da consciência se processa em seu próprio ritmo. “A Sempreternidade é ainda mais fundamental. O homem identifica-se primeiro com o círculo (e com o tempo do personagem); em seguida com a linha (tempo da Consciência) e, por fim, com o ponto (Sempreternidade)”.

d) Hierarquia e Gnoseologia: A realidade se divide em níveis, a existência evolui à medida que os níveis se tornam mais altos. Em cada nível “há seres superiores e inferiores a nós, o que nos colocar em nosso verdadeiro lugar no universal”.
Deuses como graus de percepção.  O próprio conceito da filosofia envolve mais que o simples estudo.

d) Visão Tradicionalista da História e do Doutrinarismo: Nossa “consciência de dimensão quantitativa” pode ter crescido ao longo do tempo, mas até a Idade Média, a dimensão qualitativa continuou a ser 'reconhecida' no Ocidente (por meio de uma Grande “Cadeia de Existência”).

Em sua “Unidade Transcendente das Religiões”, Frithjof Schuon também se refere a alguns trações inerentes à filosofia perene que são: : 1) Os estágios sucessivos da realidade; 2) A realidade não é objetiva (ela é 'experiência de Deus'), 3) A experiência de Deus  - o Intelecto divino – está 'por trás' da experiência consciente de todas as criaturas, o que nos permite dizer que ela está em todas as criaturas; 4) a dualidade do exoterista verifica-se entre ele como criatura e Deus como Existência – portanto, entre dois aspectos dele mesmo. O esoterista reconhece a realidade dessa dualidade. 6)  O absoluto é a razão da existência, não há o que perguntar; 7)  a Existência é inescapável e, no que diz respeito a isso, podemos dizer que não temos livre arbítrio. Porém isso aplica somente a nossa condição humana, não à nossa divindade.

 
Para os tradicionalistas, na visão de René Guénon, a “(...) a mentalidade moderna é simplesmente o produto de uma vasta sugestão coletiva, a saber, a de que este mundo do homem e da matéria é a única realidade, e para Evola [um autor tradicionalista com idéias próprias mas que também se referencia em Guénon], esse mudança foi uma 'decisão metafísica' que tomamos (portanto na qual não podemos voltar atrás) com nosso livre-arbítrio”. Entretanto, sublinha que “(...) 'tradicionalismo' denota apenas uma tendência, que não implica nenhum conhecimento efetivo das verdades tradicionais”.

Não falta ao expoente maior do “Sophia Perennis” uma periodização das Eras (Krta, Treta, Dvapara e Kali Yugas)  – assim como o fizeram todas as Tradições do passado, da Índia, à Grécia e Roma. Esta classificação pode ser explicada nos termos do esquema de Giambattista Vico, que propõe uma Idade dos Deuses, dos Heróis e uma dos Homens, em que, na primeira, os deuses falam diretamente aos mortais por meio de seus sacerdotes (iniciadores) e, na última a humanidade passa a ser governada por homens comuns, com uma linguagem comum.

Aprofundando sua análise, no livro “O Reino da Quantidade e os Sinais do Tempo”, que veio à lume em 1953,  Guénon aponta o rumo antitradicionalista tomada pela humanidade a partir do Renascimento, desembocado no materialismo e correntes assemelhadas que se 'insinuaram-se na mentalidade geral e, finalmente, conseguiram estabilizar essa atitude sem recorrer a nenhuma formulação teórica'. Ou seja, o home mecanizou a tudo e a si mesmo, 'caindo pouco a pouco em unidades numéricas, parodiando a unidade mas perdido na uniformidade e na indistinção da 'massa'.

Porém, à humanidade ainda cabe algum alento. Pode ser que estejamos no fundo do poço, mas o caráter cíclico das eras - ensina o Mestre da Tradição - assegura-nos que à frente teremos uma nova Idade de Ouro, na qual a Filosofia Perene será abraçada por todos.

terça-feira, janeiro 03, 2012

Paul Johnson. Sócrates - Um Homem para nossos Tempos ("Socrates - A man for our times")



Socrates - A Man for our Times
O livro “Socrates – A Man for our Times” (“Sócrates – um Homem para nossos Tempos”) do historiador Paulo Johnson, lançado pela Penguin Books em 2011 (e ainda sem edição brasileira) é trabalho de alto nível e que instiga o leitor a vôos mais altos. Não faltaram críticos como David Mikics acusando Johnson de simplificar excessivamente seu retratado ou vestir-lhe como um “conservador” dos nossos tempos, mas a despeito do que se diga do livro ele tem ao meu ver três méritos notáveis: isola o que poderia ser o verdadeiro Sócrates, cujas opiniões e abordagem são bem distintas do “boneco articulado” criado por seu discípulo Platão, aponta sua condição de simples cidadão ateniense e escrutinador da natureza interna dos homens, de todas as classes sociais e esclarece com maestria inúmeros pontos obscuros da trajetória do filósofo entre sua condenação e a morte por ingestão da taça de cicuta.

Sócrates sempre estava de bom humor. Andava com as pernas arqueadas, para os padrões da Hélade era feio como um sátiro e, volta e meia, via-se identificado com horrendo e mitológico Sileno, ostentando na velhice uma  pança significativa. Não dava atenção à vestimenta ou a aquisição de bens materiais, preferindo um bom pedaço de pelo para confeccionar sapatos a um lote para erigir sua moradia. Bom soldado, sua coragem em batalha fora exaltada por Alcebíades. Lutava descalço e sem qualquer proteção sob o rigor do inverno ático, com aspecto tão duro que amendrotava os combatentes inimigos. Pai de família e admirador da sabedoria feminina (celebrou o espírito e amou a companhia intelectuais e filósofas notáveis como Diotima e Aspásia), Sócrates era um cidadão ateniense exemplar. Amava sua cidade, na qual era louvado por amigos, políticos e homens simples de diferentes ocupações. Outros o odiavam e caricaturavam, entre eles alguns professores e catedráticos muito parecidos com os sacripantas dos atuais departamentos universitários (os sofistas) e autores como Aristófanes (que o pintara como um sátiro maléfico e astuto em “As Nuvens). É claro que dada a inclinação da massa medíocre à manipulação mentirosa - que tal como hoje, em menor escala, também surtia seu efeito danoso - não era pequeno o número de seus detratores e algozes. 

Não conhecemos com exatidão o que Sócrates realmente disse. O que nos chegou veio através de Platão, que projetara a si mesmo em seus diálogos, parindo um “golem”, um “boneco articulado” que alguns analistas apelidaram de “PlatSoc”. Não era o Sócrates de carne e osso que falava amíude, mas a criatura com os cordões puxados pelo ventríloquo platão, salvo em raríssimas oportunidades como na “Apologia”, um registro “verbatim” do que dissera a seus interlocutores como defesa em seu próprio o julgamento.

Este Sócrates cuja vida fora tão misteriosa quanto a morte, nada escreveu. Não criou academias ou liceus, como Platão e Aristóteles. Nada afirmou de peremptório e jamais sustentou apego a crenças  sobre o além túmulo angariadas nos cultos de mistérios, como Platão. Não há um “sistema socrático”, mas apenas o dever, inspirado por seu “daimon” pessoal de examinar os homens e “partejar” a verdade que se encontra em seu interior empregando o “elenchos”, técnica semelhante à que os juízes empregam nos tribunais para extrair a verdade. O objeto de Sócrates era a virtude, nada mais que isso. Seu ensinamento condenava o relativismo moral tão ao gosto dos atenienses e que servia de matéria-prima a alguns sofistas, aos quais era maliciosamente associado (ou por pura ignorância, como era o caso de Aristófanes).

Sua obra era a construção de homens e mulheres bons, virtuosos. Nada mais que isso. Nesta tarefa, para a qual recebeu a paga que todo o mundo conhece, foi mestre de ilustres cidadãos atenienses como Critias e Alcibíades, que implicados, respectivamente, no violento governo dos “Trinta Tiranos” e na ardilosa manobra que conduzira a cidade à guerra da Sicília (o maior dos desastres  militares atenienses) representaram sua ruína. O que Johnson especula – na falta de indicações mais precisas – é que no clima de revolta e dor que se seguira à mortandade de supostos inimigos do Estado (durante a tirania), Meletos lançara a acusação infundada de impiedade (isto é, não adorar os deuses que o Estado adora) e corrupção da juventude como forma de encontrar, na pessoa de Sócrates, um bode expiatório para seus próprios erros. Mercê de sua fidelidade às próprias ideias e à fina ironia com que conduziu sua defesa (que irritara sobremodo o júri) – o filósofo recebeu sua pena, escolhendo a morte por cicuta em lugar de abandonar sua querida cidade.

Sem comparar Sócrates a Jesus (ou Platão a Paulo), a obra mais uma vez cala fundo no coração deste leitor. O que se depreende da vida e morte daquele que se atingira a glória de ser o maior filósofo do Ocidente é que todos aqueles que cultivam princípios e os partilham, ao invés de submeter-se à mesquinhez dos tiranetes de plantão, convertem-se em sérios candidatos ao cadafalso pelo inexpiável crime de não adorar os deuses da cidade (ou os voláteis princípios ideológicos de ocasião impostos por pequenos grupos de pressão e interesses políticos miúdos) e “corromper a juventude” (proclamando-lhe os princípios necessários ao enfrentamento das manobras conduzidas pelas mesmas minorias que controlam o aparato social).

Ofereçamos um galo a Asclépio!