A safra literária recente que
atende aos anseios do buscador sincero não é generosa no Brasil. Acostumado a
receber material de má qualidade e segunda mão, o brasileiro é presa de um
mercado editorial canhestro que lucra com publicações de auto-ajuda ou esoterismo
à la “Nova Era”. Há honrosas exceções, como a Madras Editora, a Editora
Teosófica e a Pensamento, que teimam em oferecer ao leitor material de melhor
qualidade. É o caso do livro “
O Retorno
da Filosofia Perene - A doutrina secreta para os dias de Hoje”, publicado
pela Pensamento em 2011.
Se no Brasil há décadas circula volumoso manancial de informação teosófica (na linha de Blavatsky e seus
seguidores), o estudante de língua portuguesa dificilmente encontrará em
vernáculo algo pertencente ao campo da “Filosofia Perene”, um ramo de estudos
das tradições religiosas que remonta aos trabalhos pioneiros do francês Réné
Guénon. Entre o que podemos conceber como um texto introdutório ao assunto (ou um pequeno, ou quase, manual para o semi-leigo), a obra de John Holman é
única, o que é auspicioso para quem deseja superar a
espiritualidade superficial e os clichês impostos pela mídia e uma indústria
editorial que atendem aos interesses escusos daqueles que delimitam o que deve ou
não ser lido.
Prova inconteste de que há uma
conspiração de silêncio em torno do Tradicionalismo e da Filosofia Perene é a
completa ausência nas livrarias, nomeadamente nesta terra de ninguém, o Brasil,
de autores como Réné Guénon, Frithjof Schuon, Julius Evola como tantos outros.
Miséria semelhante atinge gigantes da envergadura de Helena Petrovna Blavatsky
– cujas obras escolhidas não existem em português; Mario Roso de Luna (o genial
polígrafo espanhol) isto, sem falar, em escritos que coloquem em cheque
mentiras históricas e falsos enredos políticos cuidadosamente inoculadas por grupos de
pressão nas mentes brasileiras.
Voltando a Holman, seu objetivo é
apresentar um panorama da visão de mundo esotérica ocidental, com foco em seus “aspectos
psico-espirituais e cosmológicos”, com altas doses de sincretismo. O primeiro ponto
que incomoda o observador perspicaz é o fato do título não corresponder ao peso
dado a diversas questões, sua priorização e ordem de exposição. Discute-se, “en passant”, escolas e autores que detêm
parentesco direto, ou não, com a “filosofia perene”, ao invés de, simplesmente
concentrar-se em seus principais expoentes, o que, por si, pagaria preço de
venda do livro e agradaria a este pouco exigente leitor. Se nos esquecermos
deste não tão desprezível senão, podemos saltar todas as páginas dedicadas à
teosofia (à moda de HPB e da Sociedade Teosófica), neoplatonismo, cabala e
passos da iniciação, entre outras, atendo-nos, por conseguinte à porção escrita
que obedece estritamente ao escopo sugerido na capa.
Isto significa procedermos a um
recorte compreendo o intervalo entre as páginas 16 e 54, que contêm rudimentos
do ensinamento “perene” úteis ao neófito, na falta do original. Tais
prolegômenos compreendem a adequada colocação histórica do problema, marcos
“metodológicos” para a análise “acadêmica” dos problemas colocados pelo esoterismo ocidental e noções
de tradição, tradicionalismo e seus elementos principais. Além disso, com
certo proveito para o estudante, a revisão de elementos-chave da contribuição
de René Guénon nos soa proveitosa, ainda que a tradução, aqui e ali, se
mostre sinuosa.
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Guénon e sua mesa de trabalho no Cairo |
O que é “philosophia perennis”? A cunhagem do termo tem sido geralmente
atribuída a Gottfried Wilhelm Leibnitz em uma tentativa de analisar a “verdade e a falsidade de todas as filosofias
antigas e modernas” o que lhe levaria a extrair “o ouro da escória, o diamante de sua mina, a luz das sombras”. Ele
próprio sacou o termo da obra “De Perenni Philosophia (1540)” do teólogo do
Século XVI Agostinho Steuco, bibliotecário do Vaticano. Para este, a “filosofia
perene” tinha a ver como uma “verdade
absoluta originalmente revelada”, uma “prisca
teologia”, a “iluminação que emana da
“Mens Divina”. Outros, fazem-na remontar a Marco Túlio Cícero, que já se
referia a uma religião-Sabedoria original e universal, “Theosofia” (tal como
empregada por Amônio Saccas e continuadores modernos como Helena Petrovna
Blavatstky e, em tempos recentíssimos, Aldous Huxley).
Traçada a origem do termo, há que
conferir-lhe correto tratamento metodológico. Afinal, nas últimas décadas do
século XX o esoterismo penetrou, nem tão “a
forceps” nas universidades, ainda que como “(...) uma linha de pensamento histórica, algo que poderíamos chamar de
tradição ‘subterrânea’ do pensamento ocidental (...) . Para tratar este
“pensamento subterrâneo”, a “(...) abordagem geralmente promovida (quando não
prescrita) é a ‘agnóstico-empírica’. Como
“abordagem agnóstico-empírica” se quer dizer que, o “(...) o que é observável para todos nós (com algum esforço e com a mente
humana comum) são as concepções dos esoteristas, não de que essas concepções
são ou podem ser (da Realidade Divina). Essas
concepções, à medida que as formos abordando, serão apresentadas de maneira
‘neutra’ (isto é, sem que haja manifestação de uma opinião acerca de sua veracidade),
e este estudioso do esoterismo ocidental não é – que fique claro desde já –
operacionalmente um esoterista, mas sim (...) um ‘esoterólogo’.”.
Trocando em miúdos, um esotórologo é alguém que admite de forma
“neutra” as concepções dos praticantes de esoterismo, abstraindo-se seus
fatores divinos, cuja percepção atina ao esoterista, a (...) a pessoa cuja experiência decorre de trilhar
o Caminho com tudo que isso implica, inclusive o desejo de renascimento
espiritual, em primeiro lugar”. O enfoque “agnóstico-empírico”, sem bem
entendi, pode ter suas lacunas preenchida por um esforço “etnometodológico” ou “gnóstico”.
Assim, “Se desejarmos realmente entender
o esoterismo, a única abordagem é a de um ‘insider’, ou seja, de alguém que
conhece alguma coisa por dentro”, o que não descarta uma abordagem
empírico-histórica usada por esoteristas-historiadores como G.R.S. Mead e Manly
P. Hall, mas o mais importante a reter é que a “(...) a prática teúrgica antes
da atividade erudita. Podemos ter tanto esooteristas quando esoterólogos, porém
o que tem importância crucial é que não precisamos ser esoterólogos para ser
esoteristas”.
O autor ao menos é realista
acerca das limitações do seu próprio procedimento como esoterólogo, ao
reconhecer que “(...) o estudo de textos
como atividade de apoio apenas, com
isso, implicando que, por mais que possa revelar acerca de um domínio empírico
que chamamos de 'pensamento esotérico ocidental', a pesquisa acadêmica comum
sempre continuará, por sua natureza limitada (sendo não procedimental), girando
em órbita do verdadeiro material”.
Após seus comentários às novas
metodologias empregadas para a compreensão do esoterismo, são repassadas
antigas tradições que formaram sua matriz no Ocidente (o gnosticismo, o
neoplatonismo e o hermetismo), até as leituras de René Guénon no Século XX, o
fundador, por assim dizer, da escola “tradicionalista” da “Sophia Perennis”, espécie
de conhecimento superior ao qual se poderia acessar por meio da “intuição
intelectual”. Para Guénon, esta “Sabedoria Primordial” expressava-se em
símbolos comuns às principais religiões do mundo, tendo como instrumento “par
excellence” a literatura sapiente de cada um deles. Para descobrir seu
significado, é preciso recorrer à gnose, o que permite que se fale um cristianismo
esotérico, hinduísmo esotérico ou simples praticantes do esoterismo que
sustentam sua própria religião.
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Guénon e Schuon. Cairo |
Não se trata apenas de uma
“tradição esotérica ocidental” segundo Guénon, mas de uma “Tradição” que se
origina no passado e tem continuidade no futuro, no Sempreterno. Desse modo, “(...)
nossa cultura ocidental moderna
(pós-medieval) não é Tradicional e, poderíamos inclusive reconhecer, é até
antitradicional, diferindo de praticamente todas as demais culturas anteriores
do planeta. Portanto, a modernidade assistiu a 'degeneração' (...)) da
civilização humana numa era de Trevas, onde a luz da Tradição se extinguiu ou,
na melhor das hipóteses, só brilha debilmente”.
Mas o que difere o “tradicional”
do “antitradicional”? Resumidamente, princípios como:
a) Quantidade e Qualidade, o homem olhando “horizontalmente para fora”, a
“(...) dimensão quantitativa, empírica, que se opõe à dimensão
metafísica (quantidade como raciocínio discursivo e a qualidade se
correlacionaria ao conhecimento);
b) o Absoluto, o Uno, Involução e
Evolução: o Absoluto por trás do Uno, que se relaciona a um princípio por trás
da natureza logóica, Uno este ao qual “do terceiro aspecto como o princípio da
Matéria, o segundo aspecto como princípio da Consciência e o primeiro aspecto
como o princípio do Espírito”;
c) Sempreternidade e Tempo: “Aquele que está por trás de nosso sistema
cósmico pensa, todas as coisas da nossa realidade sensível se manifestam”. Neste
ponto, é fundamental ter em conta que “eternidade
significa duração infinita, referindo-se ao tempo “exotérico”.
Sempreternidade, outro conceito decisivo, refere-se ao 'sempre agora' (Coomaraswamy a chamava de 'agora sempre') ou o momento
esotérico dentro de cada momento do tempo exotérico. Portanto, o Eu supremo
do homem, o espírito, reside em Deus e, portanto, o tempo esotérico. Em termos
mais amplos pode-se então distinguir três tipos de tempo: 1) o tempo que o
personagem mede; 2) o sempreterno e o 3) o “tempo da consciência”. Assim “(...)
a evolução da consciência se processa em seu próprio ritmo. “A Sempreternidade
é ainda mais fundamental. O homem identifica-se primeiro com o círculo (e com o
tempo do personagem); em seguida com a linha (tempo da Consciência) e, por fim,
com o ponto (Sempreternidade)”.
d) Hierarquia e Gnoseologia: A realidade se divide em níveis, a existência
evolui à medida que os níveis se tornam mais altos. Em cada nível “há seres
superiores e inferiores a nós, o que nos colocar em nosso verdadeiro lugar no
universal”.
Deuses como graus de percepção. O
próprio conceito da filosofia envolve mais que o simples estudo.
d) Visão Tradicionalista da
História e do Doutrinarismo: Nossa “consciência de dimensão quantitativa” pode
ter crescido ao longo do tempo, mas até a Idade Média, a dimensão qualitativa
continuou a ser 'reconhecida' no Ocidente (por meio de uma Grande “Cadeia de
Existência”).
Em sua “Unidade Transcendente das
Religiões”, Frithjof Schuon também se refere a alguns trações inerentes à
filosofia perene que são: : 1) Os estágios sucessivos da realidade; 2) A
realidade não é objetiva (ela é 'experiência de Deus'), 3) A experiência de
Deus - o Intelecto divino – está 'por
trás' da experiência consciente de todas as criaturas, o que nos permite dizer
que ela está em todas as criaturas; 4) a dualidade do exoterista verifica-se
entre ele como criatura e Deus como Existência – portanto, entre dois aspectos
dele mesmo. O esoterista reconhece a realidade dessa dualidade. 6) O absoluto é a razão da existência, não há o
que perguntar; 7) a Existência é
inescapável e, no que diz respeito a isso, podemos dizer que não temos livre
arbítrio. Porém isso aplica somente a nossa condição humana, não à nossa
divindade.
Para os tradicionalistas, na
visão de René Guénon, a “(...) a
mentalidade moderna é simplesmente o produto de uma vasta sugestão coletiva, a
saber, a de que este mundo do homem e da matéria é a única realidade, e para
Evola [um autor tradicionalista com idéias próprias mas que também se
referencia em Guénon], esse mudança foi uma 'decisão metafísica' que tomamos
(portanto na qual não podemos voltar atrás) com nosso livre-arbítrio”.
Entretanto, sublinha que “(...) 'tradicionalismo'
denota apenas uma tendência, que não implica nenhum conhecimento efetivo das
verdades tradicionais”.
Não falta ao expoente maior do
“Sophia Perennis” uma periodização das Eras (Krta, Treta, Dvapara e Kali
Yugas) – assim como o fizeram todas as
Tradições do passado, da Índia, à Grécia e Roma. Esta classificação pode ser explicada
nos termos do esquema de Giambattista Vico, que propõe uma Idade dos Deuses,
dos Heróis e uma dos Homens, em que, na primeira, os deuses falam diretamente
aos mortais por meio de seus sacerdotes (iniciadores) e, na última a humanidade
passa a ser governada por homens comuns, com uma linguagem comum.
Aprofundando sua análise, no
livro “O Reino da Quantidade e os Sinais do Tempo”, que veio à lume em 1953, Guénon aponta o rumo antitradicionalista
tomada pela humanidade a partir do Renascimento, desembocado no materialismo e
correntes assemelhadas que se 'insinuaram-se
na mentalidade geral e, finalmente, conseguiram estabilizar essa atitude sem
recorrer a nenhuma formulação teórica'. Ou seja, o home mecanizou a tudo e
a si mesmo, 'caindo pouco a pouco em
unidades numéricas, parodiando a unidade mas perdido na uniformidade e na
indistinção da 'massa'.
Porém, à humanidade ainda cabe
algum alento. Pode ser que estejamos no fundo do poço, mas o caráter cíclico
das eras - ensina o Mestre da Tradição - assegura-nos que à frente teremos uma
nova Idade de Ouro, na qual a Filosofia Perene será abraçada por todos.